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É preciso parar e escutar

Em meio a diversas histórias contadas na parashá que lemos hoje, dois eventos misteriosos chamam atenção. No primeiro, enquanto Moshe está tranquilamente pastoreando o rebanho de seu sogro, ele encontra um arbusto, uma sarça, pegando fogo, sem ser consumida. Uma passagem famosa de nossa tradição. O segundo inicia com a seguinte frase: “Em um acampamento noturno no caminho, Adonai o encontrou e tentou matá-lo.” Tsipora corre à ação, circuncisa seu filho e passa o prepúcio cortado em suas pernas. Um mistério menos famoso.


Meu querido amigo, estudante rabínico, Rodrigo Baumworcel perguntou em seu comentário à parashá para o Arzenu Brasil esta semana: Quanto tempo Moshe teve que observar a sarça para entender que o fogo não a consumia? Quantas pessoas passaram pela sarça ardente e não prestaram atenção a ela?


O rabino Gunther Plaut, por sua vez, chama a atenção para o fato de que, no segundo episódio que mencionei, não é possível identificar quem foi atacado e por que, se foi Moshé ou seu filho; como Adonai tentou matá-lo, com um enviado ou uma doença; nas pernas de quem o prepúcio foi colocado, de Moshé ou seu filho?


Em ambos os casos misteriosos, uma conclusão é aparente: tanto Moshé quanto Tsipora estavam prontos, atentos, dispostos a entender a mensagem e agir. Assim como na haftará, que vemos também Jeremias sendo chamado a ser profeta.


Uma piada judaica tradicional (contada de diversas formas diferentes) fala de um homem que, preso no telhado de sua casa, em uma enchente, pede que Deus o salve. Passa um bote, oferece ajuda ao homem, e ele responde: “Obrigado, Deus vai me salvar”, então vem um barquinho um pouco maior, oferece ajuda e novamente: “Obrigado, Deus vai me salvar”. Um helicóptero vem ao resgate e o homem, já meio irritado, responde: “Obrigado, Deus vai me salvar”. O homem morre, e chegando aos céus questiona “Deus, por que você não me salvou?” e Deus responde: eu te enviei um bote, um barco e um helicóptero. O que mais eu poderia ter feito?


Tsipora parece ter a presença de espírito, a agilidade de alguém que sabe estar diante de uma prova divina. Ela é filha de um sacerdote! A passagem deixa a entender que ela sabe o que tem que fazer, aceita a tarefa, por mais difícil que possa ser – afinal, circuncidar o filho ou o marido não pode ser fácil! – e fala palavras que até hoje são misteriosas: “você é um chatan damim - noivo de sangue - para mim”, e assim soluciona o problema. Um parêntesis rápido e certeiro na narrativa da parashá.


Por outro lado, imagino Moshé, olhando aquela sarça em fogo, prestando atenção e se perguntando por que não estava se consumindo. Calmamente ele se aproxima do arbusto e o arbusto fala com ele. Ele tranquilamente tira as sandálias e conversa com Deus. Diferente de Tsipora, ele não aceita sua tarefa imediatamente. Ele questiona seu chamamento, indaga sobre o nome de Deus, confronta a própria fraqueza e dificuldade de fala. É preciso um convencimento para que Moisés assuma sua tarefa, maior, mais duradora e mais difícil do que a apresentada a Tsipora.


Nesta parashá somos levados a questionar quantas vezes somos apresentados por chamamentos e deixamos que eles passem porque não estamos prontos para ele. Da mesma forma, podemos nos perguntar quantas vezes deixamos o salvamento passar, por não estarmos preparados para enxergar a mão Divina no comum, no corriqueiro. Para mim, a chave reside em nossa abertura para falar com Deus. Olhar o comum, descalçar os sapatos, reconhecer e se entregar à oração. “Eu sou o Deus de seu pai, Deus de Avraham, Deus de Itzhak, Deus de Iaacov”, esta frase da parashá que foi incorporada à Amidá, nossa reza central, é como Deus se apresenta para Moshé. De acordo com a Jewish Study Bible, Deus se apresenta desta forma porque cada um tem a possibilidade de estabelecer uma relação individual com Deus. Cada um de nós, a cada momento diferente do dia ou da vida, é apresentado com a possibilidade de abrir o coração em uma fala própria e pessoal com Deus. Estejamos abertos e dispostos para este diálogo.


Em minha cabeça ecoam as palavras de Gilberto Gil:


Se eu quiser falar com Deus Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios Tenho que esquecer a data Tenho que perder a conta Tenho que ter mãos vazias Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus Tenho que aceitar a dor Tenho que comer o pão Que o diabo amassou Tenho que virar um cão Tenho que lamber o chão Dos palácios, dos castelos Suntuosos do meu sonho Tenho que me ver tristonho Tenho que me achar medonho E apesar de um mal tamanho Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus Tenho que me aventurar Tenho que subir aos céus Sem cordas pra segurar Tenho que dizer adeus Dar as costas, caminhar Decidido, pela estrada Que ao findar, vai dar em nada Nada, nada, nada, nada Nada, nada, nada, nada Nada, nada, nada, nada Do que eu pensava encontrar


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