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Vayera - Bereshit 18:1-22:24

Esta semana, não pude deixar de ler a parashá com o olhar feminino. Uma das características do livro de Bereshit é trazer histórias bastante difíceis para nós, mulheres, lidarmos. Vaierá traz um menu completo de violências, grandes e pequenas contra mulheres.


Nesta parashá confrontamos a dor e descrença diante da infertilidade sofrida por Sara. Lemos sobre como Deus fica bravo com Sara quando ela ri, sendo que na parashá anterior, nada acontece com Avraham quando ele tem a mesma reação diante da mesma informação. Vemos Sara ser novamente entregue a outro homem por seu marido, que no final acaba novamente enriquecendo em virtude do mal imposto a Sara. Hagar é expulsa por pedido de Sara: duas mulheres que se agridem por causa de um homem, de um lugar na estrutura social daquela tribo. Hagar que sofre ao ver seu filho quase morrer de fome e sede no deserto. O sofrimento calado de Sara, lido em entrelinhas, sem narrativa, quando seu filho é entregue em sacrifício por seu próprio marido. A esposa de Lot, punida ao olhar para trás ao deixar sua cidade, seu lugar, seu passado.


Mas, em minha leitura, a maior agressão desta parashá acontece contra as filhas de Lot. Duas moças sem nome, que são oferecidas pelo pai a uma multidão enlouquecida, no lugar de dois desconhecidos que ele abrigava: “Eu imploro a vocês, meus amigos, não cometam tal mal. Olha, eu tenho duas filhas que não conheceram um homem. Deixe-me trazê-las para vocês, e vocês podem fazer com elas o que quiserem; mas não façam nada com os outros, pois eles estão sob o abrigo do meu teto”[i].


Mais adiante, no texto, após a morte de sua esposa, Lot vai viver afastado da civilização, ao ponto de suas filhas acreditarem que não há outras pessoas que sobreviveram na Terra. Quando então vem a estranha narrativa de que elas embebedam o pai para que ele faça sexo com elas e elas engravidem, mas ele não lembra. A dificuldade desta narrativa é tamanha, que despertou o questionamento dos rabinos, descrito na compilação Bereshit Raba: “[A princípio,] não saberíamos se Lot desejava suas filhas ou suas filhas o desejavam, mas com base no que está escrito [em Provérbios 18:1]: “Aquele que se separa busca desejo”, é claro que Lot cobiçou suas filhas, e suas filhas não o cobiçaram.”[ii]


Assim, as filhas de Lot, que antes foram oferecidas como diversão para uma multidão, o que provavelmente levaria a um estupro coletivo e possível morte das meninas, passam a ser objetos e vítimas do desejo do próprio pai.


Inspirada na análise da acadêmica Ilona Rashkow, a Professora Reverenda Wil Gafney observa que vários detalhes da história têm semelhanças com relatos de incesto: uma figura materna ausente (emocional ou fisicamente); uso de álcool ou drogas; colocação de culpa em pessoas mais jovens no relacionamento; isolamento das vítimas e controle de seu acesso a outras pessoas. Por este prisma, Lot pode ser visto como um homem que cabia perfeitamente no local onde vivia, e se tornou o algoz de suas próprias filhas, a quem oprimiu, seduziu e abusou.


Ao trazer luz para esta história absurdamente sombria, e todas as outras agressões contra mulheres que encontramos nesta parashá, trazemos a possibilidade de falar sobre as inúmeras agressões que mulheres continuam sofrendo. A dor da infertilidade, a dor da infidelidade, a dor da agressão física, moral e sexual. A dor imposta por outras mulheres, que ainda não acreditam que há lugar para todas em nossa estrutura social.


Em seu midrash, a Prof. Rev. Wil Gafney traz uma ideia de cura para estas meninas: “Em uma aldeia, eles encontraram uma profetisa, e quando elas confessaram o que tinham feito, ela disse que não era culpa delas e que não se preocupassem. YHWH abençoaria os frutos de sua união; cada um herdaria parte da terra em que vivia. As filhas deram aos filhos nomes que refletiam a dura realidade de suas origens, entendendo que Lot havia perdido a boa vontade do Deus que tudo vê, a quem Hagar viu, e que agora havia passado para elas.”


Assuntos doloridos estão na Torá, porque a Torá fala da vida. Precisamos encarar o texto bíblico sem pudores, e falar acerca de todos os assuntos, para que o texto se mantenha vivo, relevante e educativo.


Que possamos usar as palavras da Torá para falar da vida real, e construir uma vida melhor para todos. Que possamos gerar a cura e não a dor, que possamos ver Deus nas relações que estabelecemos.


Shabat Shalom.

[i] Bereshit 19:7-8 [ii] Bereshit Rabbah 51:9

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