A parashá Vaishlach, que começa com a pacificação entre os irmãos Esav e Iaacov, que passa pelo clássico episódio em que Iaacov luta contra um ser celestial, sendo abençoado e renomeado após o evento, para mim, é a parashá de Dina. É a parashá em que Rachel morre ao dar à luz no meio do caminho, onde é enterrada e deixada, é a parashá em que Reuven toma Bilá, concubina de seu pai, e se deita com ela. É a parashá de Dina.
Dina é estuprada, sequestrada, calada. A narrativa é violenta, Shchem toma Dina e a estupra, Iaacov ouve o acontecido e fica calado, os irmãos de Dina se revoltam e acabam por praticar um massacre. Dina não tem voz, é um instrumento triste de uma realidade que se repete até hoje. Não se trata de Dina, de sua dor, seus medos e angústias. Trata-se da honra dos homens que a rodeiam, de suas ações e inações, da perspectiva masculina do que aconteceu a ela.
Não menos violenta é a frase largada ao meio do texto bíblico que diz que Reuven fez sexo com Bilá. É um trecho interrompido, um fragmento, sugerindo que algo foi perdido do texto, ou que haveria algo mais a se falar deste episódio. Uma interrupção abrupta no texto, uma abrupta interferência na vida de Bilá. O silêncio deve falar o que as palavras não disseram: mais uma mulher, que não importava, foi tomada por um homem que tinha um objetivo - confrontar seu pai. Uma história entre homens, que usam uma mulher como instrumento sexual de sua disputa.
Entre estes dois acontecimentos, Rachel dá à luz Ben-Oni, imediatamente renomeado por Iaacov como Benjamin. Morta no caminho, sua última palavra é apagada por seu marido, o nome que dera a seu filho foi trocado. O caminho continua, a vida continua, Rachel ficou para trás.
Eu gostaria de me calar, mas não posso. Eu gostaria de não sentir a urgência de falar sobre Dina, Bilá e Rachel. Eu gostaria de não precisar mais lembrar que Dina acontece todos os dias em todos os países do mundo, até hoje. Eu não posso me calar.
Dados apontam que no Brasil, no primeiro semestre de 2020, houve um crescimento de 2% nos homicídios de mulheres e uma alta de 1% nos feminicídios. Para violência física, o percentual aumentou de 59,9% em 2019 para 67% em 2020. Para violência sexual, houve uma variação ainda maior: 57% em 2019 para 69,6% em 2020.
Os dados comprovam o que sinto e digo. Eu não conheço nenhuma mulher que não tenha ao menos um caso de violência, de qualquer espécie, para contar. Seja um comentário idiota, uma mão boba indesejada, um beijo forçado, um assédio ou uma violência maior. Toda mulher vive com medo. Toda mulher aprende a conviver com o medo. Toda mulher aprende a sobreviver aos seus próprios medos. E como Dina, seguimos caladas. Como para Bilá, a narrativa é interrompida. Como Rachel, enterramos em algum lugar do caminho e seguimos a vida.
Shabat Vaishlach deveria ser o shabat em que lembramos das mulheres vítimas de violência sexual. Shabat Vaishlach deveria ser o shabat em que, obrigatoriamente, todas as comunidades judaicas parassem para olhar para suas mulheres e perguntar: o que eu posso fazer para que você se sinta segura? Até que um dia, se tudo der certo, possamos, finalmente, nos calar.
Até lá, eu não posso ficar calada.
Dina #MeToo.
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