Mais uma rica parashá de Bereshit. Esta é famosa pela história da gravidez de Sarah, nascimento e sacrifício de Itzhak.
Quase desconhecida e muito incômoda, no entanto, é a passagem da visita dos anjos à cidade de Sodoma, e sua interação com Lot. Ao saber da visita de estrangeiros na cidade, jovens e velhos tentam sequestrar os visitantes da casa de Lot falando: “tragam eles para fora para que os conheçamos”. O verbo utilizado para a ação é o “conhecer bíblico”, ou seja, há uma clara conotação sexual. Percebendo que o grupo pretende abusar sexualmente de seus visitantes, desconhecidos, Lot oferece em troca suas filhas virgens, para que eles façam o que quiserem.
Como pode Lot oferecer suas próprias filhas no lugar de desconhecidos?
Há uma explicação de que vizinhos traziam poder político e econômico, reciprocidade que naquela época era muito valiosa; por outro lado, filhas mulheres tinham pouca serventia social. Outra explicação encontrada é que, aos olhos de Lot, o estupro coletivo de homens seria pior do que o de mulheres, mesmo sendo elas suas filhas.
Entre os contos sobre Lot e suas filhas, em Legends of the Jews 1:5:155, há outra história chocante sobre outra filha que Lot, chamada Paltit, que teria sido queimada pela população de Sodoma por ter oferecido água para um pedinte. Um pai que já perdeu uma filha, oferecer as outras duas para serem destruídas, pela mesma população que assassinou a primeira, é totalmente fora da minha possibilidade de compreensão. Mais ainda, o que faz os sábios inventarem uma história absurda e violenta como esta?
A alteridade da mulher e o status menos desejável são assumidos em toda a literatura rabínica. Enquanto as mulheres são creditadas com mais compaixão e preocupação com os desafortunados do que os homens, elas também estão ligadas à feitiçaria, loucura e desonestidade entre uma série de outras qualidades negativas inerentes. No texto bíblico, em especial nesta parashá, a mulher é muitas vezes tratada como uma propriedade do patriarca da família, um objeto que pode ser descartado para ser utilizado por uma população enfurecida ou, no caso de Sara, entregue a outro homem por seu marido, para protege-lo de possíveis perigos surgidos em virtude da beleza dela.
O texto bíblico é difícil, mas somos autorizadas a discordar dele. Assim como não fazemos mais sacrifícios de animais, hoje entendemos que a mulher tem a concepção trazida em Gênesis 1. Criada junto e com o mesmo valor que o homem. Somos imagem e semelhança Divina, com mesma capacidade, direitos e voz que os homens. Voz para gritar, voz para mudar a narrativa e proteger nossas irmãs, filhas e netas que aqui estão ou virão. Voz para, ao invés de calar o texto bíblico, mostrar seu absurdo e trazer para o contexto da necessidade de proteção da mulher contra a tradição patriarcal.
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