Para mim, Pessach tem muitas mensagens de coragem e de que fazer o que se acredita ser o certo nem sempre é o mais fácil. Na verdade, normalmente é o caminho mais difícil. Mas Pessach também é o chag que nos convida a sair do lugar e partir em busca do desconhecido. Pessach é o ponto de partida de nossa contagem comunitária com destino à Torá, em Shavuot.
Desde pequena aprendi que o serviço de Izcor, que acontece em Pessach, Shavuot, Shemini Atzeret e Iom Kipur, é o momento em que crianças assim como adultos com pais vivos, devem sair da sinagoga. O serviço de Izcor desenvolveu um lugar único no meu imaginário. Por um lado, era o momento de encontro com todos os amigos no lado de fora da sinagoga, quando podíamos conversar e colocar as notícias em dia; mas também havia um mistério gigantesco: o que acontecia lá dentro da sinagoga que eu não podia ver?
De acordo com a tradição, os motivos para uma pessoa com pais vivos não presenciar o serviço de Izcor são: a alegria do Iom Tov, que não pode ser estragada por um serviço que a pessoa não precisaria presenciar; a possível identificação da pessoa nomeada em homenagem a algum ente falecido, e assim atrair más energias para si mesmo; unicidade da kehilá, ou seja, que todos os presentes tenham a mesma intenção ou kavaná; e para não atrair mal olhado, ou seja, por superstição.
Conta um midrash, uma lenda rabínica, que Abaye um dia ficou muito impressionado com a inteligência e capacidade de Rav Papa, que era muito jovem. Por isto, perguntou a ele onde viviam seus pais. Rav Papa respondeu que ambos viviam na cidade, pertinho dele. Abaye ficou tomado pela inveja, pois havia se tornado órfão muito cedo, e atribuiu à proximidade dos pais de Rav Papa sua capacidade. Com esta energia nos olhos, Abaye olhou para os pais de Rav Papa, e estes morreram.
Histórias assim fundamentam o inexplicável, mas não me convencem. No entanto, há uma explicação racional que traz sentido a este costume: filhos vêm seus pais e mães como fonte de força, segurança e conforto. O Izcor é um serviço extremamente emocional, no qual adultos choram, algo que as crianças de outros tempos não estavam acostumadas a presenciar. Em especial após a segunda guerra, serviços de Izcor eram extremamente doloridos, para aqueles que haviam passado pelos horrores da guerra. Eles precisavam deste espaço reservado, para chorar, sentir, sofrer, e depois seguir em frente.
Quando comecei a estudar o rabinato, entendi que não há qualquer impedimento na halachá para que uma pessoa com pais vivos assista um serviço de Izcor, que o que nos impede são somente superstições. Então, apesar de ter pai e mãe vivos e não precisar participar do Izcor, passei a assistir os serviços ao lado da minha mãe, que é uma pessoa que chora muito, até com comercial de TV, e que gostou de ter um carinho e companhia neste momento. Amanhã, pela primeira vez, participarei da liderança de um serviço de Izcor. Meus pais continuam bem, mas agora vou carregar o Kavod, pesar e honra, de conduzir minha comunidade por esses caminhos de memória, compartilhando o processo de emoções que nos trazem sabedoria.
Do mistério à superstição, da racionalidade ao carinho, para finalmente chegar ao serviço para a minha comunidade, esta é minha travessia neste Chag haPessach. Nesta minha travessia, convido a todos para que superem suas superstições e se deixem levar pela emoção do serviço. A emoção gera incerteza, ver o sofrimento causa insegurança, mas lidar com as emoções mais profundas nos permite o crescimento.
Amanhã de manhã leremos Shirat haIam, o exato momento em que os bnei Israel atravessam o mar em direção à imensidão, ao desconhecido. A travessia do mar vem escrita quase como um desenho na Torá, para que possamos nos inspirar em suas letras vivas em nossas travessias pelos mares da vida.
Amanhã chegamos ao fim de Pessach, o chag (festividade) que nos ensina que é preciso coragem para desafiar as ordens do Faraó e decidir proteger e preservar a vida. Que é preciso acreditar naquilo que a princípio parece loucura, como um arbusto em chamas que não se consome, pragas vindas do nada, ou a mensagem de um homem gago e seu irmão. É preciso muita determinação para sair do lugar que se conhece, por pior que seja ele, e procurar um novo caminho. Mais do que tudo, Pessach nos ensina a importância da travessia, de entrar no Mar Vermelho e se permitir transformar. Que é preciso deixar a escravidão, a superstição, com força, determinação, sabedoria e coragem para chegar na outra margem e viver a liberdade do sentir e agir.
Shabat Shalom.
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