Em hebraico, a palavra “rosh” significa cabeça. Assim como as cabeceiras de um rio são onde o rio começa, a cabeça do ano é onde o ano começa. E “shaná”, que sabemos significar ano, também contém sugestões de outra palavra em sua raiz: shinui, que significa mudança. Portanto, Rosh HaShaná pode ser entendido como o início da mudança. O mesmo aconteceu com o Judaísmo, quando Neemias instituiu a leitura pública e a explicação da Torá, para construir uma comunidade em torno dos ensinamentos de Deus. Naquela época, o primeiro dia do sétimo mês, Tishrei, não era conhecido como Rosh HaShaná, como é hoje. O livro de Neemias nos diz:
“Era o primeiro dia do sétimo mês – o primeiro de Tishrei – toda a comunidade estava reunida: homens, mulheres, crianças e aqueles que podiam entender. Esdras, o escriba, subiu na torre de madeira que eles haviam feito para esse propósito, ele abriu o livro, bendisse a Deus, e eles leram o livro dos ensinamentos de Deus, expondo e dando razões, e explicaram o que foi lido.” Esta foi a primeira vez que a Torá foi lida publicamente para a congregação. Não foi a primeira mudança necessária na prática judaica, e nem a última. E embora algumas destas mudanças tenham sido impostas por adversidades, elas ajudaram o Judaísmo a tornar-se o que que praticamos hoje. Estas mudanças permitiram que o Judaísmo sobrevivesse e se espalhasse por todo o mundo.
Mudanças podem ser boas ou ruins, mas é difícil encontrá-las sem qualquer tipo de dor ou luta durante o processo. O epítome da mudança é a lagarta, que se torna uma linda borboleta, mas, para tanto, precisa passar por um período de casulo. A mudança tem a ver com as escolhas que fazemos, com a forma como decidimos reagir às realidades que temos pela frente, mas também com as consequências das escolhas passadas que nos levaram a estar aqui e agora.
Na minha vida e na vida da minha família, uma grande mudança aconteceu há um ano, quando nos mudamos para Londres. Tínhamos motivos perfeitos para nos mudar: eu estava perseguindo meu sonho, meu marido estava atrás de um novo desafio em seu trabalho e esperávamos que minha filha lucrasse com a grande mudança. Porém, para mudar para cá, tivemos que encerrar um capítulo de 20 anos de nossas vidas. Tivemos que vender coisas, alugar a casa, sair do lugar onde nossos filhos nasceram e onde passamos tantos momentos lindos juntos. Nossas famílias ficaram lá e tivemos que aprender a morar longe. Depois de dois meses, tanto meu pai quanto minha mãe tiveram problemas de saúde e tive que voltar para o Brasil. Aprendemos que podemos voltar quando necessário. Um ano se passou, estamos todos felizes por estar aqui, a vida é boa, o clima não é problema, minha filha tem amigos e boas notas na escola, e temos tudo o que precisamos para fazer um bom brigadeiro sempre que precisarmos de um gostinho de casa. Porém, agora, minha mãe está doente no Brasil e eu estou aqui. Não posso voltar e isto dói.
Este é um shaná de shinui – um ano de mudança. Estas são as últimas Grandes Festas em que usaremos este machzor, a partir do qual esta congregação reza desde 1985, pois um novo será publicado em breve pelo Movimento Reformista[i]. Em cada página há lembranças de Yamim Noraim do passado: anotações, pequenos papéis, marcas do tempo. Estamos nos despedindo dos nossos machzorim e de todas as lembranças que eles nos trazem. É o primeiro ano que estaremos juntos num espaço, num espaço diferente, não no nosso querido prédio[ii]. Esta é uma mudança que está planejada desde as Grandes Festas do ano passado e foi tema de inúmeras reuniões, com muitas pessoas envolvidas. Amanhã saímos do nosso edifício e, com ele, a tradição de termos dois serviços religiosos simultâneos durante as Grandes Festas. É uma grande mudança! Estaremos juntos, o tempo todo, pela primeira vez.
A mudança nos faz olhar para trás e refletir sobre nossas escolhas, o que ganhamos e o que perdemos. Sempre há alguma perda e dor envolvidas no processo de mudança. Há incerteza e medo. No entanto, desistir, lamentar e nunca ficar satisfeito são maldições das quais acabamos de lembrar quando lemos a parashat Ki Tavo.
A impermanência é a realidade: tudo muda o tempo todo. Nunca podemos voltar para o mesmo rio, porque a água está sempre fluindo e estamos em constante mudança, como ensina o filósofo grego Heráclito. Podemos tentar resistir à mudança, mas isso levará à exaustão e, no caso das comunidades, à extinção. Para navegar adequadamente pelas mudanças, precisamos conhecer nossos valores fundamentais, ser determinados, mas também flexíveis.
Nas palavras do autor norte-americano Brad Stulberg: “Para prosperarmos nas nossas vidas – e não apenas sobrevivermos – precisamos transformar a nossa relação com a mudança, deixando para trás a rigidez e a resistência em favor de uma nova agilidade, um meio de ver mais daquilo que a vida nos lança como algo para participar, em vez de lutar. Estamos sempre moldando e sendo moldados pela mudança, muitas vezes ao mesmo tempo.”
Portanto, seguindo os ensinamentos dos nossos antepassados, estamos aqui juntos: homens, mulheres, crianças e aqueles que podem entender. Durante estas Grandes Festas, nos reuniremos em torno da Torá, em torno da oração e em torno de explicações que nos ajudarão a ser uma grande comunidade sagrada, juntos em um só lugar. Estamos às cabeceiras de um rio que, esperamos, correrá pacificamente, irrigará novos solos e colherá frutos. Não será livre de correntezas, haverá medo e tristeza, mas também haverá música e alegria.
Shinui tov, Shana Tova!
[i] Um novo machzor, com linguagem atualizada e melhor diagramação está sendo publicado este ano pelo Movimento Reformista Britânico. Aqui todas as sinagogas reformistas usam o mesmo machzor, publicado pelo Movimento. [ii] Este ano, a sinagoga Sha’arei Tsedek, onde trabalho, alugou um espaço lindo na escola judaica JCoss, onde toda a comunidade cabia em um único ambiente, ao invés de em duas salas do prédio deles, como foram os anos anteriores.
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