Um dia, quando discutiram uma halachá (lei), Rabi Eliezer fez de tudo para validar sua opinião, mas os outros Rabinos não aceitaram as explicações dele. Depois de falhar em convencer os rabinos logicamente, Rabi Eliezer disse a eles: Se a halachá estiver de acordo com minha opinião, esta arvore provará isso. A árvore então andou sozinha. Os rabinos disseram: a árvore não pode provar uma halachá. Rabi Eliezer então disse a eles: Se a halachá estiver de acordo com minha opinião, o riacho o provará. A água do riacho voltou para trás e começou a fluir na direção oposta. Disseram-lhe: o riacho não pode provar uma halachá. Rabino Eliezer então disse a eles: Se a halachá está de acordo com minha opinião, as paredes da sala de estudos o provarão. As paredes da sala de estudos inclinaram-se para dentro e começaram a cair. Rabi Yehoshua repreendeu as paredes e disse a elas: Se os estudiosos da Torá estão discutindo uns com os outros em questões de halachá, por que vocês se envolvem? As paredes não caíram, mas não se endireitaram. Rabi Eliezer então disse a eles: Se a halachá estiver de acordo com minha opinião, o Céu o provará. Uma voz divina emergiu do céu e disse: Por que vocês estão divergindo do rabino Eliezer, já que a halachá está de acordo com sua opinião? O rabino Yehoshua pôs-se de pé e disse: Está escrito: “Lo bashamaim hi” “Não está no céu”[i]. A Torá já foi dada no Monte Sinai, não consideramos uma Voz Divina. Uma vez que a maioria dos rabinos discordou da opinião do rabino Eliezer, a halachá não segue sua opinião. Anos depois, Rabi Natan encontrou o profeta Eliahu e perguntou: O que Adonai fez? Eliahu disse: O Santo, Bendito seja, sorriu e disse: “Meus filhos triunfaram sobre mim; Meus filhos triunfaram sobre mim.”
Este midrash é conhecido como o Forno de Achnai[ii]. Os sábios do Talmud nos ensinam, nesta história, que uma vez entregue a Torá, não está mais nos céus a possibilidade de interpretar o texto, mas cada geração, ao seu modo e diante de sua realidade, tem o direito de estudar, se apropriar, e decidir sobre como aplicar este texto, mesmo que seja de maneira contrária ao que antes havia sido estabelecido.
Esta é a maior tradição do judaísmo. O judaísmo sempre foi assim. Estático? Não! O judaísmo sempre foi a busca pelo que é mais correto no seu tempo. Aprendemos aqui do Talmud, aprendemos nos diversos textos proféticos do Tanach, e aprendemos na parashá que lemos nesta semana: Pinchas.
Pinchas está entre minhas parashot prediletas na Torá. Não pela história que dá nome à parashá, mas (1) porque esta é uma parashá que nomeia oito mulheres na contagem dos bnei Israel (filhos de Israel) que saíram de Mitsraim – algo extremamente raro no texto bíblico, e (2) pela história das filhas de Tslofehad.
Conta a Torá que, no momento da divisão das terras entre as tribos, estas foram atribuídas aos homens de cada clã. Então, Mahlá, Noah, Hoglá, Milcá e Tirzá se levantaram diante de Moshe, Eleazar, os anciãos e toda a assembleia, e questionaram: “nosso pai não teve filhos homens, morreu no deserto não por castigo, mas naturalmente. Não é justo que seu nome seja perdido somente porque ele não teve filhos!” Deus então disse: “O pedido das filhas de Tslofehad é justo, elas devem receber terras em nome de seu pai, e todo homem que somente tiver filhas, elas deverão herdar a terra de seu pai”.
Esta história, para a vida judaica, é um marco importantíssimo na Torá, não somente porque cinco mulheres se sentiram suficientemente empoderadas para se levantarem em frente de toda a comunidade e apresentarem sua indignação, mas, principalmente, porque aqui a decisão Divina é alterada por uma interjeição humana, de cinco mulheres, que tiveram a coragem de apontar a injustiça da decisão divina que haviam acabado de ouvir.
Reside então, dentro da Torá, o momento inicial em que a própria Torá começou a ter seu texto alterado ou resignificado, em virtude da realidade daqueles que vivem a lei estabelecida pelo texto bíblico.
Muito mais tarde, por volta do ano 70 da Era Comum, com a destruição do Templo, que lembramos em Tishá beAv que está se aproximando, acontece a primeira grande transformação do judaísmo, um marco decisivo para a sobrevivência do judaísmo. Diante da ausência de um Templo, um local sagrado para fazer as oferendas (que também lemos na parashá desta semana), os sábios da época desenvolvem todo um sistema de rezas e práticas religiosas novas, baseadas no texto bíblico, mas alteradas para esta nova realidade. Assim, nós, humanos, tomamos em nossas mãos a responsabilidade de alterar, não o texto em si, mas o significado do texto para torná-lo possível de ser vivido em nossos dias. Como justifica o midrash do forno de Achnai, que contei logo no começo.
Muitas outras mudanças aconteceram desde então no judaísmo: o povo se espalhou pelo mundo, adquiriu hábitos dos lugares onde viveu. Nos tornamos outros tipos de tribos: agora não somos mais gaditas, levitas ou menashitas, mas somos ashkenazim, sefaradim, mizrachim. A revolução francesa nos trouxe a haskalá – o iluminismo judaico-, e a necessidade de lidarmos com uma nova realidade: somos parte integrante das sociedades dos países nos quais vivemos. Então desenvolvemos diferentes ideologias de como lidar com esta inserção social. Passamos a ser reformistas, conservadores, ortodoxos, e tantas outras possibilidades. Após a Segunda guerra mundial, passamos a ter Israel novamente, e novamente nos adaptamos, inserindo em nosso calendário os marcos civis de nossa mátria: Iom Haatsmaut, Iom haZikaron, dia da diáspora.
O rabino Dana Evan Kaplan disse em seu livro American Reform Judaism, de 2003: “O Judaísmo será capaz de sobreviver apenas se sua cultura puder ser transmitida à próxima geração de uma forma convincente. ... O movimento reformista precisa desenvolver uma estratégia de engajamento de judeus, jovens e idosos em programas que combinem o significado espiritual com a unidade da comunidade de uma forma que os inspire a buscar mais.”[iii]
Esta tensão entre a manutenção do conforto do conhecido e as mudanças necessárias para o engajamento das novas gerações é a busca constante das comunidades judaicas. Não é uma exclusividade nem uma invenção do Movimento Reformista. É o que há de mais constante no judaísmo, desde a Torá, com as filhas de Tslofhad, até os dias de hoje. Adaptamos a halachá à nossa vida cotidiana, interpretamos o texto para que ele faça sentido em nossos dias. Continuamos assim a manter a mais antiga tradição do judaísmo: estudar, adaptar, resignificar, renovar e manter a nossa tradição viva. Afinal, o judaísmo sempre foi assim.
Shabat Shalom!
Comments