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Protestar é preciso

Há um midrash, muito controverso, que conta a história de uma viúva que tenta achar meios para sobreviver com suas filhas com o pouco que tem, mas a cada tentativa, ela esbarra em uma regra que a impede de obter meios suficientes para sair da situação de desespero em que se encontra. Cansada, ela desiste. Diz o midrash que esta foi a história que Korach contou antes de falar as palavras escritas na Torá:


“Vocês foram longe demais! Pois toda a comunidade é santa, todos eles, e o Eterno está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação do Eterno?”[i]


O midrash, por mais controverso que seja, me lembra os tempos de infância, em que minha mãe, professora universitária, lutava para nos dar tudo o que precisávamos. A imagem da minha mãe chorando porque precisava pagar o aluguel, que aconteceu uma vez na minha vida, há muitos anos atrás, nunca me saiu da cabeça. Viver sob as leis dos homens pode ser duro demais para uma mulher sozinha e seus filhos. Meu espírito inconformista deve ter sido alimentado por estas pequenas e marcantes lembranças do passado, me levando a uma vida abraçando causas para defender. E, talvez, por essas lembranças, olho para Korach e penso na dificuldade em dividir o mundo em bom e mal.


Apesar da leitura pura do texto não nos levar a esta imagem de Korach, que justificaria o castigo terrível que lhe foi imposto, tradicionalmente aprendemos que Korach é o mal, Moisés é o bem. A literatura rabínica preenche o pano de fundo que falta, pintando Korach como um demagogo que só queria saber de si mesmo. A Mishná ensina que a controvérsia de Korach foi o epítome de uma disputa que não foi por causa do Céu – be shem shamaim.


Korach, pela leitura do texto, parece ter motivos até bons em nossos olhos de hoje: ele queria substituir a autoridade ditatorial de Moisés, embora sancionada por Deus, por uma democracia. Afinal, se “todos nós somos santos”, como Deus havia afirmado antes de anunciar o Decálogo[ii], o modo apropriado de governo é que todos tenham voz na decisão de quem deve liderar o grupo e como. Do nosso ponto de vista atual, não podemos criticar muito severamente Korach. Hoje lutamos pela democracia eclesiástica e política em oposição à autocracia. Em que consistiu então o crime de Korach e seus companheiros?


(...)


Thomas Jefferson disse que “um pouco de rebelião de vez em quando é uma coisa boa”, se pensarmos bem, a própria nação dos Bnei Israel nasceu de uma rebelião contra os Egípcios.


A rabina Sharon Brous sugere que a a incapacidade de Moisés ouvir Korach quando ele se apresentou e pediu ao líder que ouvisse uma narrativa que contradizia aquilo que ele conhecia é a chave do problema. Se Moshé tivesse realmente escutado, talvez a discussão não tivesse sido tão ferrenha, e a consequência não teria sido a violência, a praga, a morte. Se Moshé tivesse se aproximado daqueles que se manifestavam, ao invés de afastá-los, talvez essa história pudesse ter sido muito diferente.


Os filhos de Korach não morreram, talvez para nos deixar a lição de que questionar a autoridade pode ser necessário. Enquanto os argumentos de Korach falharam aqui, eles prevaleceram no texto da Torá como instrução[iii]. “Tais são os estranhos caminhos da história e as obras paradoxais de Deus.”[iv]


“Não há nada tão poderoso quanto uma ideia cujo tempo chegou e há um poder igualmente destrutivo em uma ideia cujo tempo ainda não chegou.”[v] Devemos lutar por nossas ideias, pela justiça e nos mover de acordo com os valores morais pregados pelo judaísmo. Precisamos reinterpretar a lei civil e judaica de maneira que sejamos um reino de sacerdotes, um povo santo, por meio de passos persistentes para nos tornarmos santos da maneira que a lei judaica nos ensina a ser. É nossa missão introduzir novas ideias e políticas de maneira que possam ser assimiladas pela sociedade de forma saudável, combatendo arduamente aqueles que assumem e usam o poder através do ego, mentiras e subterfúgios. Mas é necessário ter em mente que toda argumentação e toda luta, por mais legítima que seja, tem o momento e a maneira certos de serem conduzidas, para que realmente reflitam positivamente em nós mesmos e na sociedade como um todo.


Shabat Shalom






[i] Bamidbar 16:3 [ii] Êxodo 19:6 [iii] Devarim 17:15-20 [iv] Reverendo Dr. Albert George Butzer [v] Reverendo Dr. Albert George Butzer

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