Nesta porção da Torá, três convidados chegam à tenda de Avraham e Sarah. Eles informam a Avraham que Deus dará um filho a Sara. Deus informa a Avraham que Sodoma e Gomorra serão destruídas, e Avraham tenta convencer Deus a salvar ao menos os justos. Somente Lot, sua esposa e filhas solteiras são salvas. As filhas de Lot o embebedam para ter filhos com ele, acreditando que a humanidade foi novamente destruída. A promessa dos visitantes se cumpre, nascendo Itzhak. Hagar e seu filho Ishmael são expulsos para o deserto, a pedido de Sarah. Deus manda Avraham sacrificar Itzhak. Hineni! Avraham obedece, mas é informado de que foi um teste de fé e um carneiro é oferecido em lugar de Itzhak em sacrifício.
Amo Bereshit! É melhor que novela. Tudo acontece em poucos pskukim (versículos) e uma infinidade de histórias se entrelaçam, suscitando milhares de questionamentos. Existe uma lógica em Bereshit: o mundo é criado, o humano é colocado nele para habitar e co-criar. Somos apresentados a situações de questionamento pessoal, relações familiares, estamos no micro, para nos tornarmos nação no próximo livro da Torá.
Neste micro, encontramos sonhos e desejos. Todos nós temos sonhos impossíveis, aqueles que a gente nem tem coragem de falar ou pedir. Sonhos tão distantes e que demoram tanto para vir, que colocamos naquela gaveta esquecida do coração. Para mim, pessoalmente, este sonho era o rabinato.
Parashá e haftará falam de sonhos impossíveis: Sara na parashá e a mulher shunamita, que nem nome tem na haftará, queriam ser mães. Mas, com idade avançada, não viam a possibilidade de terem seus sonhos realizados. Elas não pediram por filhos, pelo contrário. Sarah riu, acredito que em um misto de receio e descrença. A shunamita pede que o profeta Elisha não lhe dê esperanças com algo impossível.
Sara tem Itzhak, o filho do sorriso, que a fez rir antes e depois de seu nascimento, que a fez convidar os outros a sorrirem com ela. Filho que ela defendeu com ações impossíveis de serem compreendidas ou apoiadas, como a expulsão de Ishmael e Hagar.
A mulher shunamita tem um filho, um menino também sem nome, que cresceu e fazia companhia ao pai. Um dia, no campo, o menino sente uma dor de cabeça, é levado com urgência para a mãe, em cujos braços ele morre. A mulher se desespera e corre atrás de Elisha, questionando[i]: “Por acaso eu te pedi um filho? Não te disse para não me enganar?”.
Itzhak é levado por Avraham para ser sacrificado, chega a ser amarrado, Avraham estende sua mão para pegar a faca e matar o próprio filho[ii], o que somente não aconteceu porque um anjo chamou duplamente: Avraham! Avraham! E ele responde: Hineni. A Torá não traz a reação de Sara, mas incomodados com esta ausência de reação, nossos sábios desenvolveram midrashim, histórias, que trazem esta narrativa. Em uma, Itzhak pede ao seu pai para ter cuidado com como ele vai contar a Sarah que sacrificou seu filho, em outra, mais contundente, Sarah pergunta: “O que seu pai fez com você?”, Itzhak conta a história, dizendo que Avraham só não o sacrificou porque o anjo o chamou.
Sonhos impossíveis, guardados na gaveta, estão lá para nos fazer companhia, talvez para termos um vazio a ser preenchido. Um ou mais, afinal, quantos sonhos guardados nós colecionamos em nossas vidas? Eu posso elencar alguns dos meus! Mas ter o sonho para ele ser tirado de você antes de estar completo é muito mais dolorido do que simplesmente deixá-lo na gaveta.
Sarah, no midrash, não aguenta a emoção da história contada pelo filho, e morre. A mulher shunamita não descansa até que Elisha faça a vida voltar a seu filho. Sara, passiva e surpreendida, morre. A shunamita, que não ficou passiva, continua sua vida, sua jornada, com seu filho.[iii] Duas reações diferentes que, para mim, trazem uma lição profunda.
Parashá e haftará mostram de maneiras diferentes e em histórias diferentes que desafiar e submeter-se a Deus e à tradição são respostas autênticas da aliança aos dilemas da vida judaica. Que a hospitalidade, que é o dar sem a expectativa de receber em troca, é sempre recompensada de maneira não esperada. Que a ação, em contraste com a passividade, te traz a força necessária ver sonhos se tornarem realidade, para continuar a jornada, mesmo que ela tenha começado de maneira inesperada.
Sonhos impossíveis são importantes, eles precisam de um lugar em nossa alma. Mas quando eles vêm à tona, tomam vida inesperadamente, não podemos medir esforços para que se tornem realidade. Sonhos que acordam são projetos, e projetos devem ser cuidados, acalentados, protegidos com unhas e dentes, sem medir esforços.
Que tenhamos a força e determinação sem nome da mulher shunamita para proteger e lutar por tudo o que nos é mais querido.
Shabat Shalom.
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