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Foto do escritorAndrea Kulikovsky

Parashat Shemini - Vaicra 9:1-11:47

Shemini é uma parashá que pode parecer duas em uma. Na segunda metade dela, lemos sobre as regras de kashrut, que indicam quais animais são puros e quais impuros para que sua carne seja consumida ou não. No entanto, é a primeira parte da parashá que tem um dos momentos mais trágicos do texto bíblico, que deu origem a muitas indagações e interpretações.


Passados os sete dias de separação de Aharon e seus filhos, no Ohel Moed, a Tenda do Encontro, finalmente eles são trazidos para fora, fazem sacrifícios de purificação e finalizam suas ordenações. Então, Nadav e Abihu fazem um fogo e colocam incenso nele, sem que tivesse havido a instrução Divina para tanto, e são consumidos pelo fogo. “Então Moisés disse a Aharon: ‘Isto é o que o Senhor quis dizer quando disse: Por meio dos que estão perto de Mim me mostro santo, e ganho glória diante de todo o povo’. E Aaron ficou em silêncio.”[i]


Olá escuridão, minha velha amiga

Eu vim falar com você de novo

Porque uma visão suavemente rastejando

Deixou suas sementes enquanto eu dormia

E a visão que foi plantada em meu cérebro

Ainda resta

Dentro do som do silêncio[ii]


O livro Orchot Tzadikim[iii], um livro medieval de ética judaica, ensina que “Há momentos em que o silêncio é bom, como quando a justiça divina atinge o homem, como no caso de Aharon.” A dor de perder os dois filhos subitamente, em um dia que supostamente seria de festa, só pode ser petrificante, tem que ficar plantada dento do cérebro para o resto da vida. Ainda mais, após o comentário de Moisés, que parece dizer que os filhos de Aharon foram usados como exemplo, em uma espécie de “bem feito!” como irmãos fazem entre si para se provocar.


Outro silêncio grita escondido nas entrelinhas do texto. O silêncio de quem não tem lugar na narrativa bíblica: Elisheva, a esposa de Aharon, mãe de Nadav e Abihu. Elen Frankel, autora do livro “The Five Books of Miriam”, uma coletânea de midrashim modernos e femininos sobre o texto bíblico, descreve a dor e desespero de Elisheva: “Ouvi um grito agudo de dentro da tenda de reunião, reconheci as vozes dos meus dois filhos, cheias de uma dor indescritível. Mas não ouvi as vozes de Aharon e Moisés. Esperei, apavorada, até que um dos sacerdotes mais jovens apareceu por trás da cortina da Tenda, com o rosto pálido e tenso de medo. 'Eles estão mortos'.” [iv]


Aharon, Elisheva e todo o povo são proibidos de se enlutarem por Nadav e Abihu, mas neste conto, Elisheva desafia o comando, e chora por seus filhos, escolhe se enlutar. Como seria possível não o fazer?


Conta um midrash que, em uma tarde de shabat, enquanto o Rabi Meir estava ensinando, seus dois filhos morreram da praga que estava afetando sua cidade. Quando o Rabi Meir voltou para casa, ele perguntou à esposa: "Onde estão nossos filhos?" Ela entregou-lhe o copo para Havdalá e ele disse a bênção. Novamente ele perguntou: "Onde estão nossos filhos?" Ela trouxe comida para ele, e ele comeu. Quando ele acabou de comer, Beruria perguntou ao marido: “Meu mestre, tenho uma pergunta. Há algum tempo, um homem veio e depositou algo precioso sob meus cuidados. Agora ele voltou para reivindicar o que deixou. Devo devolver a ele ou não? " Rabbi Meir respondeu: “Quem detém um depósito é obrigado a devolvê-lo ao seu dono.” Então ela pegou a mão dele e o levou até onde seus dois filhos estavam. Ele começou a chorar, gritando "Meus filhos, meus filhos." Ela o consolou: “Adonai natan, Adonai lakach, Adonai deu, Adonai tomou. Yehei shemei rabá mevorach, que o Nome do Senhor seja abençoado”.[v]


Há um sofrimento calado na perda sofrida por Brúria, patente no fato de ela colocar o shabat de rabi Meir acima de sua própria dor, de sua própria perda; uma dor resignada na ideia de que a vida dos filhos não pertencia a ela, mas a Deus.


O calar da dor de Brúria, em benefício do marido; o calar da voz de Elisheva, que não é sequer mencionada no texto bíblico; o calar da voz de Aharon, que fica mudo diante da morte dos filhos. O silêncio gerado pela dor ecoa o grito da alma. Ensina o Orchot Tzadikim que: “A abundância de palavras é como um fardo pesado, e o peso de muitas palavras é mais difícil de suportar do que o peso de muito silêncio”[vi].


Nesta mesma parashá, mais afrente, Moisés questiona os dois filhos remanescentes de Aharon, Itamar e Eleazar, por eles não terem comido a carne de um sacrifício, como Moisés havia indicado. Então, Aharon responde: “Veja, hoje eles trouxeram suas ofertas perante Adonai, e tais coisas me aconteceram! Se eu tivesse comido oferta pelo pecado hoje, Adonai teria aprovado?”. Em minha leitura, pareceu uma resposta rude de Aharon a Moisés, como que um desabafo. O comentarista medieval Rashi diz que Aharon responde em lugar de seus filhos, de maneira rude, e que seus filhos ficam calados por respeito ao pai. Talvez seja este o momento em que Aharon não consegue mais ficar calado. Em algum momento, a dor represada grita mais alto que o silêncio.


Este shabat, localizado entre Iom haShoá e Iom haZicaron, formas diferentes de memória pela perda, como falamos no Cabalat Shabat de ontem, é chamado Shabat Tekumá, o shabat do renascimento. Que possamos aproveitar a liberdade de expressar emoção, sentimentos e dor. Que possamos viver o dolo por cada uma de nossas perdas, em seu ciclo completo, e encontrar a cura ao final, mesmo que eles nos deixem profundas cicatrizes.


Dedico este estudo à memória do querido Tio Walter.


Shabat Shalom.



*imagem: Dikla Laor


[i] Vaicrá 10:3 [ii] Paul Simon – The Sound of Silence [iii] https://www.sefaria.org/Leviticus.10.3?lang=bi&with=Orchot%20Tzadikim&lang2=en [iv] Frankel, Ellen – The Five Books of Miriam, Harper Collins Publishers [v] Midrash Mishlei 31:2 [vi] Orchot Tsadikim

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