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Parashat Naso - Bamidbar 4:21-7:89

Se eu fosse fazer um resumo rápido da parashá Naso, seria quase uma tabela: censo dos levitas; pureza comunitária, em especial sotá (mulher acusada de adultério) e nazirato (homem ou mulher que se dedica a Deus); bênção dos Cohanim. Parece pouco, mas é uma parashá riquíssima, cheia de histórias e nuances.


Mas hoje, por conta do estudo de Torá que vou liderar na convenção da WUPJ Connections 21, foquei muito na questão da Sotá, e sua ligação com a situação das mulheres nos dias de hoje. Como se ligar em um texto que dá ao homem a possibilidade de desconfiar da sua esposa e levá-la a uma provação humilhante diante de todos os que queiram assistir. Como achar um sentido atual para este texto?


"Se alguma esposa se perder e quebrar a confiança de seu esposo ... e não houver testemunha contra ela ... o esposo levará sua esposa ao sacerdote. E trará uma oferta por ela ... O sacerdote pegará água santificada em um recipiente de barro e, pegando um pouco da terra que está no chão do Tabernáculo, o sacerdote a colocará na água ... o sacerdote descobrirá a cabeça da esposa ... O sacerdote irá esconjurar a esposa, dizendo-lhe: ... se você não se perdeu tornando-se impura estando casada com seu esposo, seja imune aos danos desta água da amargura ... Mas se você se perdeu enquanto casada com seu marido ... que esta água que induz o feitiço entre em seu corpo, causando fazendo com que o ventre distenda e a coxa enfraqueça. "[i]


Uma reação ao texto é de que o ritual é um “engana trouxa”, feito para aliviar a tensão do marido enciumado, mas que não faria mal algum para a mulher, afinal, quem não comeu areia na praia quando criança?


No entanto, o texto bíblico é o início para a elaboração rabínica posterior, e nossos sábios capricharam na maldade quando detalharam a cerimônia da sotá: “E o sacerdote agarra suas roupas e as puxa, sem se preocupar com o que acontece com as roupas. E ele puxa a roupa dela até revelar seu coração, ou seja, seu peito. E então ele desfia o cabelo dela. E depois o sacerdote trazia uma corda egípcia feita de fibras de palmeira e a amarrava acima dos seios dela. E qualquer um que desejasse observá-la poderia vir para observar”[ii] Como observa a acadêmica Dra Ruchama Weiss “Os Sábios da Mishná entenderam isso como o principal componente da punição. Infelizmente, eles escolheram descrever o "ritual" de uma forma que aumenta esse elemento de humilhação física a um nível que me parece um estupro público”.


Se adicionarmos a este texto a consideração talmúdica de que humilhar o outro é equiparável ao assassinato “aquele que envergonha o outro, é como se tivesse derramado sangue”[iii], a maldade do texto se torna ainda maior.


Ao desconfiar de sua esposa ao ponto de levá-la ao sacerdote para passar pela provação de sotá, o marido está fazendo algo como condená-la à morte, sem que ela tenha o direito de se defender, de se explicar, de sanar os questionamentos. O ciúmes do marido é motivo suficiente para apagar o nome de sua esposa, fazer o equivalente a um assassinato.


E o que isto tem a ver com os dias de hoje? Vivemos em um Brasil onde a justificativa “legítima defesa da honra” era válida até a decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal em 12 de março de 2021. A tese da legítima defesa da honra admitia que uma pessoa, normalmente um homem, mate outra, normalmente uma mulher, para proteger sua honra, em razão de uma suspeita ou traição em relação afetiva. Qualquer semelhança não é coincidência. Matar uma mulher em razão de ciúmes, é a expressão mais extrema e irreversível de violência e discriminação contra mulheres. Esse crime é um ato de ódio que distorce de forma extrema todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza, reforçando a configuração da estrutura de poder do sistema patriarcal de dominação.


A Parashat Naso, como ensina a rabina Sarra Levine, nos ensina que somente quando pudermos trazer as mulheres de volta à sua condição humana plena, somente quando cada uma de nós puder assumir a responsabilidade por nossas próprias ações no mundo e não expressar nossos sentimentos nos outros, e somente quando pudermos ver uns aos outros e se tratem como seres humanos plenos, o nome de Deus deixará de ser apagado do pergaminho (parte ritual da cerimônia de sotá).


Nasso nos faz pensar na fragilidade da mulher nos tempos antigos, mas também refletir acerca desta fragilidade ainda nos dias de hoje, ainda em nosso meio. Assim como nossos sábios baniram a cerimônia ainda nos tempos talmúdicos, devemos buscar uma sociedade onde mudanças continuem a acontecer para a proteção de todos os gêneros, que hoje vão muito além de mulheres e homens. Todos devemos estar seguros, todos devemos ter a chance de um julgamento correto, de dar explicações, todos devemos ter a possibilidade de sair de um relacionamento instável sem que o outro precise pagar com sua vida para isto. Somente então, poderemos chegar a um momento de bênção.


“Que Deus te abençoe e te guarde.

Que Deus te trate de maneira gentil e graciosa.

Que Deus erga Sua face para você e te dê a paz!”


Shabat Shalom.



[i] Bamidbar 5:12-22 [ii] Mishnah sotah 1:5-6 [iii] Bava Metziah 58b-59a

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