Em Mishpatim, Moshé começa a detalhar as leis de Deus para os israelitas. São leis civis, leis de responsabilidade, leis criminais, leis rituais, leis financeiras e leis de família. Deus descreve os detalhes das três festas de peregrinação: Pessach, Shavuot e Sucot, e então provê um anjo para proteger os israelitas de seus inimigos e adverte os israelitas a seguirem suas leis. Deus Se revela a Moshe, Aharon, Nadav, Avihu e 70 anciãos. Moisés sobe o Monte Sinai para se encontrar com Deus por 40 dias e 40 noites, deixando Aharon e Chur no comando.
Como o título da parashá sugere, a leitura desta semana consiste quase inteiramente em mishpatim – leis – sobre a vida cotidiana. Dirigidos a um povo que viajou apenas uma curta distância no tempo e no espaço desde escravidão, os mishpatim são tudo menos legalismos mundanos – são instruções para a construção de uma sociedade justa. No entanto, A primeira lei das leis desta parashá começa com uma frase surpreendente: “כי תקנה עבד עברי – Quando você adquire um escravo hebreu.”[i] Como podemos falar em escravizar um hebreu quando há duas semanas fomos libertados da escravidão?
A rabina Aviva Richman sugere que foquemos atenção ao verbo adquirir, ao invés de focarmos na escravidão em si: “temos que reinterpretar radicalmente o significado de ‘Quando você adquirir um escravo hebreu’ como um convite para “adquirir” como Deus, não como o Faraó. Deus também “adquiriu” escravos hebreus, não para escravizá-los, mas para libertá-los”. De acordo com o ensinamento dela, a frase vem para que possamos nos questionar, para que evitemos ser como os egípcios que adquiriram escravos para maltratar, subjugar, matar. Devemos nos policiar para não abusarmos de nossos lugares de poder para diminuir o outro, porque o poder é temporário, no sétimo ano, o escravo será um homem livre.
A interpretação é absolutamente coerente com uma das diretrizes mais profundas, repetida duas vezes apenas nesta porção: “Não enganem nem oprimam o estrangeiro, porque vocês foram estrangeiros na terra do Egito.”[ii] Este é o epítome da moralidade do Êxodo: não devemos perpetrar sobre os outros o que foi perpetrado contra nós. Quer conheçamos ou não o sofrimento dos escravos, nós hoje ainda somos ordenados a agir como se soubéssemos. Como escreve o rabino Yitz Greenberg: “A experiência da escravidão que quebra e esmaga os escravos não destrói as pessoas livres. Evoca sentimentos de repulsa e determinação para ajudar os outros a escapar desse estado.” Essa determinação divinamente dada de ajudar os outros impulsiona nossa responsabilidade moral.
Então, adquirir como Deus não pressupõe o estar subjugado aos outros, mas a liberdade de autodefinição. Essa releitura radical da aquisição não é apenas significativa para quem tem o poder estrutural, mas também ressoa para o escravo hebreu recém-libertado que ouve que o futuro ainda mantém a escravidão. A aquisição é sobre catalisar uma transformação em direção ao autoconhecimento profundo, admiração e criação. É utilizar as estruturas hierárquicas não para alimentar o ego e o poder daquele que está acima na pirâmide, mas para dar força e capacidade para a evolução daqueles que estão na base, para que cresçam e adquiram a liberdade.
Podemos comparar a estrutura de escravidão do hebreu com a criação do mundo: em seis dias Deus criou, no sétimo descansou, e a partir de então, o humano passa a ser seu parceiro na criação, trabalhando a terra e cuidando do mundo. Da mesma forma, o escravo hebreu serve por seis anos, e no sétimo é libertado com meios que possibilitem sua subsistência e a manutenção de sua liberdade.
Mishpatim é um emaranhado de leis que nos lembram que ser livre também significa ter limites. Os limites, neste caso, são impostos pelas leis dadas por Deus através de Moshé, leis em que todos aceitam algumas restrições à sua liberdade para que a sociedade possa funcionar. Mas leis que têm um forte caráter moral, que tornam cada um responsável pelo outro. Novamente chamados a continuar a criação Divina, agora enquanto nação. Deus protege o povo como um todo, mas cada um de nós é responsável pelo outro, pela proteção dos mais fragilizados, por adquirir para então libertar.
Shabat Shalom
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