Itró, a parashá que lemos esta semana, conta da chegada do sogro de Moshé ao acampamento dos israelitas, trazendo Tsipora e seus filhos, Guershon e Eliezer. Moshé conta a Itró, sobre o milagre do êxodo. Itró proclama que o Deus israelita é maior que todos os outros deuses e faz um sacrifício. Itró então aconselha Moshé a delegar papéis de liderança. Os israelitas acampam no sopé do Monte Sinai. Depois de três dias, a montanha se enche de fumaça e, ao som de trovões, trombetas, e outros efeitos especiais, Deus entrega os Asseret haDibrot (conhecidos como Dez Mandamentos) ao Seu povo.
A primeira coisa que me chama atenção nesta parashá é a ausência da família de Moshé. Assim como não soubemos de sua ausência antes que Itró trouxesse Tsipora e seus filhos, depois não ouvimos mais falar deles. Moshé, que lidera todo o povo, ignora sua família. E isto é bastante claro no verso: “Moises saiu ao encontro de seu sogro; ele se curvou e o beijou; um perguntou ao outro como estava e entraram na tenda.”[i] Se Moshé falou com Tsipora, Gershon e Eliezer, o texto bíblico não achou relevante relatar.
“A Parashat Itró é frequentemente entendida como uma lição sobre liderança. É uma história sobre dar e, mais importante, receber conselhos. Itró ensina Moshé a delegar, propondo um modelo que vem sendo imitado nos sistemas judiciários e na estruturação institucional desde então. Moshé demonstra como reunir um povo em torno de uma nova visão, como uma sociedade comprometida com ideais e valores compartilhados. Aprendemos muitas lições sobre como implementar mudanças e construir uma nação ou organização. Por que então começar com esta cena da família ignorada de Moisés?”[ii] questiona a rabina Michelle Fisher.
Talvez um segundo ponto de incômodo desta parashá esteja ligado com esta ausência da família na vida de Moshé. Deus instrui Moshé a comandar que todo o povo se mantenha puro, para se apresentar aos pés do Sinai em três dias. Moshé transmite a mensagem com uma frase adicional que é desconcertante: “Estejam preparados para o terceiro dia; [os homens entre] vocês não devem se aproximar de uma mulher.” Moisés deliberadamente, e unilateralmente exclui as mulheres do Sinai.
Ou, mais enfaticamente, como coloca a professora Athalya Brenner-Idan “O texto realmente e decididamente exclui as mulheres de permanecerem no Sinai e de receberem os Mandamentos, portanto, de participarem igualmente no mito fundamental da recepção da Torá. (...) O ponto é que na imagem da cena na Torá, eu nunca estive lá em primeiro lugar.”[iii]
A imagem de um povo feito somente por homens é questionada inclusive por nossos sábios do passado, que interpretaram o texto de diversas formas diferentes, para possibilitar a leitura de um povo completo, como Deus ordenou: mulheres e homens receberam juntos a Torá aos pés do Monte Sinai.
A acadêmica Judith Plaskow, uma das pioneiras do feminismo judaico, ressalta que “Moisés filtra e interpreta os mandamentos de Deus através de uma lente patriarcal. Suas palavras são um paradigma do tratamento das mulheres, mas um paradigma complexo. Elas mostram como a tradição judaica tem repetidamente excluído as mulheres, mas também a maneira como essa exclusão deve ser entendida como uma distorção da Revelação.”
Não há dúvidas de que, apesar da linguagem masculina, da lente patriarcal e do foco nos homens como audiência principal dos Mandamentos, as mulheres estavam no Sinai e devem entender os Asseret haDibrot como seus, como nossos, e devemos sentir, repetidamente, a cada leitura da Torá, como se eles estivessem sendo entregues para nós, unidas aos pés do Sinai.
No entanto, também podemos entender que, ao excluir sua própria família de sua vida, Moshé não se permite ter a visão de um povo completo, construído por famílias: mulheres, homens e crianças. Que Moshé transporta suas falhas humanas de sua vida pessoal para seu papel de líder dos israelitas. Talvez a lição aqui seja para que nós, na correria das tarefas de todos os dias, nas responsabilidades que carregamos em nossos trabalhos, também não deixemos de lado nossas famílias.
“A vida familiar de Moisés é um desafio para cada um de nós. Podemos superar a tensão entre nossas famílias e nosso trabalho? Imagine quão mais completo Moisés teria sido como líder se tivesse sido capaz de incorporar em sua compreensão da sociedade israelita a excitação, o medo, a timidez e o amor que sua esposa e filhos sentiam. Imagine se Moisés tivesse se aberto pessoalmente e compartilhado seus sonhos com eles, deixando-os entrar em sua vida espiritual e emocional.”[iv]
A vida é muito mais completa quando compartilhada. Que possamos aprender com a parashá desta semana que, para que a Revelação aconteça, é preciso que estejamos juntos, em família, não somente aos pés do Sinai, mas em cada passo do caminho, em cada desafio e em cada conquista.
Shabat Shalom.
[i] Plaut, Gunther; A Torá, Um comentário Moderno; UJR [ii] https://www.myjewishlearning.com/article/parashat-yitro-on-leadership-and-family/ [iii] https://www.thetorah.com/article/the-decalogue-are-female-readers-included [iv] Rabina Michelle Fisher
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