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Pandemia, sofrimento e comunidade – um abraço maternal

Em dezembro de 2019, mesmo sem nos darmos conta, nossas vidas foram mudadas completamente. O mundo como conhecíamos acabou, e fomos engolidos pelo medo inimaginável. Hoje, 21 meses depois, ainda estamos tentando sair das armadilhas deste perigo desconhecido, com o qual tivemos que aprender a conviver. Estudos demonstram que as mudanças na rotina e o temor de adoecer elevaram o número de casos de sofrimento psicológico e de problemas psiquiátricos. Pesquisas e aplicativos foram desenvolvidos para identificar sinais de depressão, ansiedade, consumo excessivo de álcool e bem-estar psicológico. A conclusão nos diversos lugares do mundo onde estas pesquisas foram feitas indicam que estamos sofrendo.


Parashá e Haftará escolhidas por nossos sábios como as leituras para o primeiro dia de Rosh haShaná trazem o sofrimento profundo de três mulheres, de três mães: Sara, Hagar e Hanna. Hanna que se sentia diminuída e sem valor pela ausência de um filho, Hagar que foi posta em perigo e quase viu seu filho morrer de sede no deserto, e Sara acometida por um sentimento escuro e profundo que a levou a pedir a expulsão de Hagar e Ishmael. Insegurança, desespero, depressão e sofrimento unem as mulheres de nossas leituras.


Enciumada do filho de Hagar, ou incomodada com a maneira como ele brincava com Itzhak, Sara manda que Avraham expulse a criada e Ishmael de sua casa. Hagar se põe a vagar sozinha com o filho no deserto. Quando a água do odre acabou, Hagar deixa a criança sob um arbusto, afasta-se, senta-se longe e pede desesperadamente: “Não me deixe ver a morte da criança”.[i]


Diante do desejo desesperado de ter um filho, Hanna vai ao altar do Templo e chora copiosamente, pedindo a Deus por um filho. O sacerdote Eli a observava: Hanna estava orando em seu coração; apenas seus lábios se moviam, mas sua voz não podia ser ouvida. “Então Eli achou que ela estava bêbada. Eli disse a ela: ‘Por quanto tempo você fará um espetáculo de embriaguez? Vá ficar sóbria!’ E Hanna respondeu: ‘Oh não, meu senhor! Eu sou uma mulher muito infeliz. Não bebi vinho nem outra bebida forte, mas abri o meu coração ao Senhor.’”[ii]


Por séculos, o Judaísmo entendeu que a depressão era uma parte da vida. A escuridão, ou depressão, que se apodera de Sara após o nascimento e desmame de seu filho, a dor e desespero de Hagar que roga para não ouvir a morte de seu menino, o sofrimento profundo de Hanna que luta com seu corpo que não gera filhos, são alguns exemplos de que nossos ancestrais bíblicos enfrentaram trevas horríveis. O sofrimento mental é uma parte natural da vida humana.


No entanto, aprendemos que são obrigações antigas e sagradas ajudar aqueles que se encontram em sofrimento a encontrar a força para caminhar com outras pessoas através da dor, por mais insuperável que possa parecer. Hanna é consolada por Eli: “Então vai em paz e que o Deus de Israel te conceda o que Lhe pediste”. Hagar chora alto, Deus ouve os gritos do jovem e um anjo faz Hagar olhar para a frente e ver o que antes não enxergou: um poço de água. Sara tem o apoio de Avraham, que faz o que ela pediu, por pior que possa parecer. Se estas mulheres nos apresentam a profundidade e diversidade do sofrer, os textos também nos mostram a importância do acolhimento.


O Judaísmo sempre entendeu que as doenças mentais e físicas merecem ser tratadas da mesma forma, e todos nós somos a chave para esse cuidado. Precisamos tornar nosso ambiente mais seguro para que mais pessoas saiam de trás das sombras e encontrem o apoio e o cuidado de que precisam para continuar com suas vidas, tanto aqueles que vivem com doenças mentais quanto suas famílias e amigos que cuidam deles. O sofrimento mental carrega consigo um estigma e preconceito que impede tantos de buscar a ajuda de que necessitam. Mas o judaísmo entende que a dor emocional e espiritual são tão reais e sérias quanto a do corpo. Basta olhar para o Mi Sheberach, a oração pela cura que recitamos pedindo refuat ha-nefesh uh-refuat ha guf, oramos pela cura do espírito, da alma e do corpo. E muitos de nós precisamos de cura para ambos.


Lemos no Talmud que Rabbi Eleazar estava doente, sofrendo de profundo desespero. Rabi Yochanan foi visitá-lo e encontrou Eleazar sozinho em uma sala escura, de frente para a parede, dizendo que a luz era muito brilhante para seus olhos e sua alma. Quando Yochanan viu que seu amigo estava chorando, perguntou: "Por que você está chorando?" Então Eleazar respondeu: "Eu choro porque toda luz se desvanece na escuridão, porque toda beleza eventualmente apodrece." Yochanan, sentado ao lado de seu amigo, respondeu: "Sim, no final das contas tudo morre. Então, talvez você tenha motivos para chorar." Yochanan sentou-se com seu amigo e chorou ao lado dele. Depois de um tempo, Yochanan perguntou: "A escuridão o conforta? Você quer esses sofrimentos?" "Não!" respondeu Eleazar. "Então me dê sua mão", responde Yochanan, e levanta Rabi Eleazar de sua cama e de seu quarto escuro.


O Talmud nos ensina, que às vezes, a melhor maneira de ajudar as pessoas que sofrem não é dissuadi-las de sua dor ou dizer-lhes que logo melhorarão. É importante reconhecer a verdade do sofrimento do outro, e talvez simplesmente estar presente com eles e acompanhá-los em suas trevas e, depois, na luz do dia. Nossa tarefa sagrada é nos fazermos presentes. Há momentos em que ficar sozinho é uma realidade que não pode ser amenizada, mas é para estes momentos que o judaísmo enfatiza a vida comunitária. Você não precisa ficar sozinho / você não precisa ficar sozinha. Mesmo que você se sinta no escuro, sua comunidade está aqui para sentar-se ao seu lado na escuridão, escutar e chorar junto com você. E quando chegar o momento, te dar a mão e te guiar novamente para a luz. Ela está à sua frente, mas é preciso força e coragem para levantar o olhar.


Nestes momentos em que o distanciamento social, as intermináveis quarentenas, as idas e vindas do presencial ao remoto e vice-versa nos desafiam na capacidade de estarmos realmente disponíveis, precisamos todos nos investir do cuidado e entrega maternal para com as pessoas em nossa volta que precisam de nosso olhar, palavra, apoio e presença.


Que neste novo ano possamos nos conectar com o abraço maternal que mora dentro de cada um de nós. Que saibamos ter compaixão por nós e pelos outros, que possamos ser compreensivos e bondosos, que tenhamos força para enfrentar as trevas assim como a luz, para curar nossas almas com risos e alegria. Rogamos para que nossos corações se mantenham abertos e amorosos, para que possamos estar realmente presentes e sejamos abençoados com bondade, compaixão e paz.


Shaná tová!



[i] Bereshit 21:15-16 [ii] I Samuel 1:1-16

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