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Onde vive Amalek

Na batalha cósmica contra o mal, para nós, judeus, o mal tem um rosto e um nome. O mal é Amalek. Sua história atravessa o Tanakh, emergindo em pontos importantes de nossa história para ameaçar a existência de nosso povo. Neste Shabat, Shabat Zachor, o Shabat da Lembrança, lemos uma das histórias mais difíceis sobre Amalek. Contamos antes de Purim, o feriado em que Haman, descendente de Agag, o amalequita, tenta exterminar nosso povo, mas em vez disso, Ester e Mordechai, descendentes de Saul, o exterminam e todos os que nos fariam mal. A haftará que lemos neste shabat apresenta seus ancestrais, Agag e Saul, opostos um ao outro.


Na haftará lemos que o profeta Shmuel diz a Saul, Rei de Israel, para ferir Amalek, e destruí-lo totalmente. “Você não terá pena dele. Você deve matar todos, homem e mulher, criança e lactente, boi e ovelha, camelo e jumento.” Mas Saul falha. Ele mata quase todas as pessoas. Mas tem pena de Agag, rei dos amalequitas: não mata os animais, não mata “tudo o que era bom”, não mata Agag. Em resposta, o próprio Shmuel mata Agag e retira o reinado de Saul.


Diz o Talmud: “Quem é compassivo com aqueles que merecem crueldade acaba sendo cruel com aqueles que merecem compaixão”[i]. Aprendemos a distinguir tipos e níveis de mal. Nem todo mal é Amalek, mas todo mal deve ser destruído. O rei Saul teve a chance de exterminar Amalek, mas poupou Agag, o rei. Séculos depois, Haman, descendente de Agag, planejou o extermínio em massa dos judeus.


Em Purim, tradicionalmente, festejamos Ester como símbolo de bravura, de transformação através dos testes que a vida nos apresenta, de força humana para mudar o curso da história e o destino de um povo, sem interferência divina. No entanto, hoje, Ester não é apenas um paradigma de fortaleza; ela se tornou, nos tempos modernos, um símbolo de escravidão. Ela foi entregue por seu tio e “escolhida” pelo rei - sem voz, sem escolha, portanto, Ester representa as mulheres subjugadas em todos os lugares. Vashti, sua antecessora, deixou de ser a mulher vã e má retratada pelo Talmud, para ser resgatada pelos movimentos feministas judaicos como símbolo da revolta contra a objetificação da mulher.


A tradição judaica é um amálgama de ritos e orações, de autoria de rabinos antigos que invocaram o Tanach (a Bíblia Hebraica) para instituir novos rituais, que são constantemente renovados de acordo com a moral e a sabedoria de cada tempo e lugar. Em um destes importantes resgates, o Jejum de Ester, que antecede a festividade de Purim, foi escolhido pela Coalizão Internacional pelos Direitos Agunot (ICAR), em 1990, para ser Yom Ha’Aguná - O Dia da Esposa Acorrentada, "porque Ester é essa mulher poderosa que trouxe a salvação, mas também porque ela está presa neste casamento terrível e é uma vítima do poder do rei.", nas palavras da Rabba Yaffa Epstein.


Aguná, palavra hebraica que significa literalmente 'ancorada ou acorrentada', é um termo utilizado pela lei judaica (halachá) para se referir a uma mulher judia que está presa ao casamento. A essência do problema está no poder concedido pela halachá ao marido em conceder ou recusar o pedido de divórcio de sua esposa. Em sua aplicação prática, a lei impede que as mulheres terminem seus casamentos se seus maridos estiverem desaparecidos ou se recusarem a conceder o divórcio, mesmo quando existem motivos justificáveis, como violência doméstica ou abandono de lar. Por este motivo, muitas mulheres são forçadas a renunciar aos direitos de pensão alimentícia, propriedade e, às vezes, até a custódia dos filhos na tentativa desesperada de obter um Get. A situação, que ao redor do mundo é aplicável principalmente à comunidade ortodoxa, em Israel também se estende no âmbito civil, para aquelas mulheres cujos casamentos são reconhecidos pelas autoridades rabínicas israelenses.


Para que se tenha uma dimensão do problema, uma pesquisa de 2004 mostrou que 100.000 mulheres tiveram o guet negado desde o estabelecimento do Estado de Israel. Outra pesquisa, de 2013, mostrou que uma em cada três mulheres em processo de divórcio em Israel está sujeita a ameaças de extorsão financeira ou outra extorsão por parte de seu marido e recusa de "obter" divórcio (guet). Os números são ainda mais alarmantes no setor ortodoxo e ultraortodoxo.


“Por cinco anos vivi no limbo. Eu estava com medo de voltar para o meu marido violento, mas os tribunais não ordenaram que ele me concedesse um get. " declarou a aguná MS. Por outro lado, Maimônides ensina: “um homem que não deseja conceder o divórcio, na medida em que deseja fazer parte do povo de Israel e deseja observar todos os mandamentos e evitar as transgressões - é apenas sua inclinação para o mal que o oprimiu - uma vez ele foi açoitado até que sua inclinação para o mal foi enfraquecida, e ele disse "eu consinto", é como se ele tivesse se divorciado de sua esposa voluntariamente.”


O problema das agunot é complicado, os chachamim, como Maimônides, ao longo da história, propuseram e implementaram diferentes soluções para este problema, mas os atuais tribunais rabínicos não implementam essas soluções. Não é preciso açoitar ninguém como sugerido no texto de Maimônides. Um acordo pré-nupcial já faz bem o papel de defesa das mulheres para evitar a questão das agunot. Em verdade, um acordo pré-nupcial é a maior declaração de amor que um casal pode fazer, em qualquer circunsância. Ninguém se casa pensando que não vai dar certo, que o amor vai acabar, mas o acordo garante às partes proteção no momento de dor, quando, às vezes, somos levados a agir de maneira diferente de quem somos.


Coletivamente, a solução está na parashá desta semana, Trumá, onde somos chamados a agir movidos pelo coração, para construir um Mikdash, um lugar onde o Divino possa viver dentro de cada um, e assim, conviver entre nós. Cada membro da comunidade, dentro de suas possibilidades e habilidades é chamado para dar a sua contribuição. Somente juntos, de coração aberto, somos capazes de construir um local digno da Presença Divina. Neste lugar, não há espaço para o mal, para a injustiça, para a opressão.


Antes de celebrar, é preciso lembrar que devemos, enquanto comunidade, nos empenhar diariamente em trabalhar para a construção de um lugar sagrado neste mundo. A principal lição de Zachor é que a verdadeira reconciliação vem por meio do arrependimento e da lembrança. A lembrança é a chave para prevenir a recorrência. A ingenuidade e a amnésia sempre favorecem os agressores, os amalequitas de todos os gêneros. Nós temos em nossas mãos e corações as armas para proteger os oprimidos entre nós.


É fácil apontar o mal do passado, é difícil reconhecer o mal do presente. É fácil indicar o vilão nos outros povos, mas é muito difícil entender que há Amalek entre nós. A mitsvá de Zachor é um lembrete severo de que Amalek vive e deve ser combatido. Sempre.


Shabat Shalom.



Seguimos em comunidade para o Barechu, na página 16 do nosso sidur.

[i] (Midrash Tanhuma Metzora, Jerusalem Eshkol, seção 1)

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