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O lugar dos desiguais

“Nossa fantasia de nascimento é de que tudo corra bem, que mãe e filho surjam saudáveis e perfeitos. Para os pais que têm um filho com deficiência, muitas das frases padrão e clishés - a contagem dos dedos dos pés e das mãos, o desejo de um futuro repleto de aprendizado da Torá - soam vazias ou até parecem cruéis. A imagem e a tradição ensinam que Chesed, o amor infinito de Deus por nós, não tem nada a ver com proezas físicas ou agilidade mental, e tudo a ver com o simples fato de que somos.” Diz a prece de Debra Orenstein.


Muitos de nossos grandes líderes da Torá são descritos como portadores de deficiências. Isaac ficou cego em seus últimos anos, Iaacov tinha dificuldade para andar e também ficou cego. Nossas matriarcas Sara e Rivka são retratadas como estéreis e Lea é descrita como tendo olhos fracos. Até mesmo Moisés, o maior líder do povo judeu, é retratado como tendo algum tipo de deficiência de fala. A literatura rabínica está repleta de discussões e conflitos sobre aplicação da halachá, a lei judaica, e a possibilidade de flexibilizá-la em caso de necessidades especiais de certas pessoas. Da mesma forma, encontramos em várias passagens questionamentos acerca da possibilidade destas deficiências serem parte de um “grande plano Divino”, o que pode parecer cruel para quem lê ou escuta.


Historicamente, as pessoas com deficiência são consideradas à luz de deficiências visíveis, como físicas, ou distúrbios da comunicação e sensoriais. O judaísmo reconhece que as pessoas podem ter deficiências que não são visíveis, incluindo, mas não se limitando a transtornos do espectro do autismo, dificuldades de aprendizagem, e transtornos do humor. Independentemente de a deficiência ser aparente ou não aparente, o judaísmo entende que, porque cada pessoa é única, as comunidades devem ser capazes de atender às suas necessidades para que possam participar de oportunidades pessoalmente significativas.


“Porque a minha casa será casa de oração para todos.” Prega o profeta Isaías[i]. As pessoas podem enfrentar uma deficiência a qualquer momento. Alguns podem nascer com deficiência, enquanto outros podem ficar incapacitados devido a um acidente ou simplesmente por envelhecer. Existem, em nossa comunidade, membros com deficiências invisíveis cujas necessidades não estão sendo atendidas. A pessoa ou família pode sentir desconfortável falando sobre suas situações pessoais, ou pior, eles podem sentir que não serão aceitos se compartilharem essas informações. Nossos valores judaicos nos ensinam que cada um de nós foi criado à imagem de Deus e cada um de nós deve ser valorizado. Nossa responsabilidade comunitária é de garantir que todos se sintam incluídos e bem-vindos em nossa sinagoga.


Muitas vezes lemos trechos do texto bíblico que causam dor e afastamento para aqueles que estão sentados nos bancos da sinagoga física ou virtual. Esta semana lemos “Nenhum homem entre os descendentes de Aarão, o sacerdote, que tiver um defeito será indicado para fazer a oferta de fogo para o Eterno; se tiver um defeito, não será indicado para oferecer a comida de seu Deus. Ele pode comer da comida de seu Deus, da santíssima assim como da santa; mas não entrará atrás da cortina ou se aproximará do altar, pois tem um defeito. Ele não profanará esses lugares sagrados para Mim, porque Eu, o Eterno, os santifico”. O trecho causa estranhamento tanto a pessoas com necessidades especiais, como a suas famílias. A exclusão da possibilidade de servir sua comunidade, de ser insuficiente para a prática sacerdotal, gera uma dor profunda, uma sensação de não pertencimento.


A Responsa 3-4 da CCAR – Central Conference of American Rabbis, que é um dos órgãos de tomada de decisão do movimento reformista, esclarece que esta era uma forma de preservar aquele que possuía a deficiência de uma exposição diante da comunidade, que poderia trazer desconforto para a pessoa e distúrbios à comunidade. Também é de se ter em consideração que o trabalho sacerdotal no Templo era físico: fazer fogo, cortar animais, espirrar sangue, assim como limpar. Atualmente, como a responsa indica, o trabalho do rabino é de sheliach tsibur: liderança de preces, acompanhamentos de congregantes, aulas e respostas. Assim, no entendimento da CCAR, não há mais que se falar de impossibilidade física para a prática rabínica. Mas as inabilidades temporárias, como uma perna ou braço quebrados, podem ser encarados como impeditivo para o trabalho, em um sentido de preservar a saúde do líder espiritual, mas não como uma impropriedade sacramental.


“A comunidade judaica dominante tem feito um trabalho muito bom ao dizer a alguns judeus que eles realmente não pertencem a este lugar, sejam elas mulheres, homossexuais, não-conformes, judeus de cor, judeus convertidos, famílias inter-religiosas ou famílias em que a mãe não é judia. Eu queria encontrar essas pessoas e trazê-las para minha sinagoga porque até que elas estejam, aqui não é realmente uma sinagoga. É como um clube de campo privado até que reflita o espírito da criação de Deus.” É o que conta o rabino Darby Leigh. Fascinado pela religião e pelas práticas espirituais, desde jovem ele pensou em se tornar um rabino, mas rapidamente desistiu, por um motivo: ele é profundamente surdo. Hoje, casado e pai de 3 filhas, ele é rabino na sinagoga Kerem Shalom de Boston.


Aprendemos no Talmud que “Um ser humano cunha muitas moedas do mesmo molde, e todas são idênticas. Mas Deus, nos cunha a todos desde o molde do primeiro ser humano e cada um de nós é único.”[ii] Cada um de nós é único em suas qualidades e defeitos, em suas capacidades e incapacidades, em suas forças e fraquezas. Respeitar como divino e sagrado de cada aspecto dos seres humanos que compõem a diversidade de nossa comunidade, escutando suas necessidades individuais, dando a privacidade ou o espaço que cada um necessita, possibilitando que cada um, à sua maneira, venha a contribuir para o todo, é o que nos possibilita ser uma kehilá kedoshá, uma comunidade sagrada.


Que a nossa ARI possa sempre ser uma tenda de portas abertas, onde todos se sintam pertencentes, dignos e respeitados em sua individualidade.


Shabat Shalom.




[i] Isaías 56: 5 [ii] Mishná Sanhedrin 4:5

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