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Nossos vários judaísmos

No filme israelense Yerusalem, sobre a operação Home Port de 1981, há o testemunho de um dos soldados da época, que perguntou, ao se deparar com as pessoas sendo resgatadas, se elas realmente eram judias. Ele, crescido e criado em um kibutz em Israel nunca tinha visto um judeu assim. Então, uma senhora idosa pega em sua perna e reza o Shemá e ele diz ao comandante: “eles são mais judeus que nós dois juntos”.[i]


Aqui no Brasil, onde pequenas comunidades se espalham em cidades distantes dos polos urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo, também percebemos este estranhamento da comunidade judaica organizada com pessoas e grupos comunitários que a um primeiro olhar são julgados diferentes.


Este estranhamento vem desde o texto bíblico, infelizmente. Miriam e Aharon, quando falam contra seu irmão Moshé, criticam sua esposa cushita – termo que é entendido como se referindo a uma etíope[ii].


Nas semanas que antecederam a esta, lemos nas parashot que da descendência de Avraham surgiram dois povos. Esta semana, lemos que do ventre da matriarca Rivka nasceram outros dois. Mas, a partir de Iaacov, deixamos de nos separar em diferentes povos, para nos espalhar pelo mundo como um único povo, que vai além de fronteiras territoriais, linhagens genéticas, unicidade de línguas e costumes. Somos unidos pela Torá, pelo pacto de Am Israel, mas diversos pelas nossas andanças no mundo e pela bagagem que adicionamos nestas tantas travessias.


Muitas lendas falam da origem dos Beta Israel, os judeus etíopes. Uma diz que eles seriam descendentes de tribos israelitas que vieram para a Etiópia com Menelik I, que seria filho do Rei Salomão e da Rainha de Sabá; outra que eles seriam descendentes de um batalhão de Judá que fugiu para o sul pelas terras costeiras da Arábia da Judéia após a divisão do Reino de Israel em dois no século 10 AEC; e ainda há quem acredite que eles seriam descendentes da tribo perdida de Dan. Apesar de não ter sido encontrada uma origem comprovada, os Beta Israel viviam no norte e noroeste da Etiópia, em mais de 500 pequenas aldeias espalhadas por um amplo território, ao lado de populações muçulmanas e cristãs, sofrendo ataques e perseguições. Os Beta Israel estavam isolados das principais comunidades judaicas por pelo menos um milênio, e praticavam uma forma de judaísmo bíblico, sem influência do judaísmo rabínico, que é o que praticamos hoje. A partir dos anos 80, eles imigraram para Israel, tendo sido resgatados principalmente em duas grandes operações, chamadas Operação Moisés e Operação Salomão. Quando chegaram, ainda esperavam encontrar o Templo, para fazer peregrinações.


Michal Samuel, que nasceu em Gondar, na Etiópia e fez aliá com sua família em 1984 como parte da Operação Moisés conta: “Quando eu era uma jovem na Etiópia, lembro-me da empolgação que sentia com cada fibra do meu ser sempre que falávamos sobre Jerusalém, o respeito que sentíamos por ela e o forte sentimento espiritual que tínhamos - especialmente no Sigd, a maior festividade comunitária. Todos os anos, 50 dias após o Iom Kipur, assim como no Monte Sinai, toda a família subia a montanha. Unidos e juntos, rezávamos, nos prostravamos e pedíamos a Deus que nos devolvesse à Terra de Israel, com orações como é descrito na seção Retorno a Tsión do Livro de Esdras e Neemias. As orações e canções eram lideradas pelos Keses, os sumos sacerdotes dos judeus etíopes. Lembro-me das lindas roupas brancas e dos dois dias em que vínhamos para a montanha por Ambuber, uma das aldeias importantes de Beta Israel na Etiópia até a imigração para Israel.”


Há treze anos, o Knesset declarou o feriado nacional de Sigd a ser celebrado no dia 29 do mês de cheshvan. De acordo com a tradição judaica etíope, o Sigd celebra a aceitação da Torá. É um momento de arrependimento, jejum e prece por Jerusalém. Hoje, comemorado tanto na esplanada do Kotel, como em Armon Hanatziv, um bairro de Jerusalém que tem vista para a cidade velha, tornou-se não somente um marco educativo acerca da comunidade judaica etíope, suas imigrações a Israel e seus costumes específicos, mas também um momento de protestos e lutas por igualdade desta comunidade na sociedade israelense.


Ontem o Sigd foi celebrado em Israel. Sua importância está na lembrança das diversas formas, cores e sabores que o judaísmo tem. Em especial para nós, que não vivemos em Israel, sua importância está na validação de tradições locais como formas válidas de viver o judaísmo. O Sigd ressalta de forma pungente a riqueza do judaísmo para muito além da famosa tradição ashkenazi, que é culturalmente imposta como a forma certa de praticar o judaísmo.


Sigd é uma celebração da esperança. Esperança de ver sonhos impossíveis, verdadeiros milagres, acontecerem. Esperança de que um dia possamos entender que somos um povo, com muitas cores, muitas variedades e muitos costumes diferentes - Klal Israel - unidos pela Aliança Divina, pela Torá, e por Jerusalém.


"Melkam yesigid beal". Um feliz Sigd!


Shabat Shalom.


Seguimos para o Barechu na página 16 do sidur


[i] https://vimeo.com/569402482 [ii] Bamidbar 12:1

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