E então apareceu um cara, filho de uma israelita com um egípcio, e ele brigou com um israelita e, no meio da briga, o filho da israelita blasfemou. Ele foi levado para Moshé, o nome da mãe dele era Shlomit bat Dibri, da tribo de Dan. Esta história lemos no final da parashá Emor, que leremos hoje.
Enquanto a maioria dos comentaristas foca seus questionamentos na blasfêmia, eu me perguntei: por que falam tanto da mãe dele, se é ele o sujeito da história? O que a pobre Shlomit tem a ver com isso, a não ser a dor futura de perder o filho, que é sentenciado com a pena de morte e é apedrejado pelos israelitas?
Eu não fui a primeira a me incomodar com o fato. Elizabeth Cady Stanton, sufragista e uma das autoras da Women’s Bible, escreveu em 1895: "O fato interessante aqui é que uma mulher é dignificada por um nome, o único assim mencionado em todo o Livro de Levítico. Isso provavelmente se deve ao fato de que o caráter do filho era tão desonroso que ele não refletiria nenhum brilho na família de seu pai então, era em seus ancestrais maternos que repousaria sua desgraça. Se houvesse algo de bom para contar sobre ele, sem dúvida, teria sido feita referência a seus progenitores masculinos. "
O super comentarista bíblico Rashi, que viveu na França na idade média, escreveu que o nome de Shlomit bat Divri diz exatamente quem ela era: “Shlomit, porque ela sempre balbuciava: "Paz seja contigo", "paz esteja contigo", "paz esteja contigo" - ela costumava balbuciar continuamente com muitas palavras (ela era uma בת דברי) - ela perguntava sobre a saúde de todos, conversando com qualquer homem, e por isso ela se meteu em problemas. Da tribo de Dan - Esta menção também do pai e da tribo da mulher nos ensina que o malfeitor traz vergonha para si mesmo, vergonha para seu pai, vergonha para toda a sua tribo.”
Por outro lado, há muitos comentaristas clássicos que ligam o comportamento do personagem à sua ancestralidade egípcia, como encontramos na compilação medieval Daat Zkenim, que diz que “Foi o fato de ele ter sangue egípcio em suas veias o responsável por amaldiçoar Deus”. Mas foi no comentário do Rabino Hezekiah ben Manoah, o Chizkuni, composto em meados do século 13, que encontrei a luz para o meu questionamento. Ele conta: “este homem cujo pai era egípcio, foi armar sua tenda entre as tendas da tribo de Dan, a tribo de sua mãe, conforme declarado pela Torá. Os danitas o rejeitaram porque a lealdade tribal é baseada no pai e não na mãe. Quando ele veio reclamar a Moisés, o tribunal manteve a opinião dos danitas. Como resultado de sua frustração, ele amaldiçoou o Deus que tanto o discriminou.”
Para entender o que acontecia aqui, precisamos lembrar que a ancestralidade naquela época vinha do pai, não da mãe. A halachá que determina que é considerado judeu aquele que é filho de um ventre judaico é posterior à Torá. Estamos falando então de um filho de um casamento intercultural, em que a ancestralidade não o conecta com a tribo, ele é um estrangeiro. E por isto temos afrente, justificando a sentença de morte, a frase “Você deve ter um padrão para estranhos e cidadãos”.
Até hoje, filhos de pais ou mães não judeus se sentem um pouco como “estranhos no ninho”. Eu sou filha de pai não judeu, posso contar por experiência própria, apesar de ser filha de ventre judeu, como já me apontaram. Os filhos de mães que não se converteram ao judaísmo são foco de maiores preconceitos, em especial nas comunidades conservadoras e ortodoxas. Em 1983, o Movimento Reformista norte americano adotou o princípio da descendência ambilinear, nosso rabino Joseph Edelheit foi parte deste grupo que redigiu a decisão. O judaísmo reformista nos Estados Unidos, hoje, considera um filho de um casal inter-religioso judeu se um dos pais for judeu e o filho for criado como judeu e receber educação judaica, comemorando eventos apropriados do ciclo de vida, como receber um nome hebraico e tornar-se bar ou bat mitsvá. Isso também pressupõe que a criança está sendo criada exclusivamente como judia e não pratica outra religião.
Visando garantir a estas famílias o sentimento de pertencimento na comunidade judaica como um todo, e assim evitar constrangimentos futuros, muitas vezes, por ocasião do Bar ou Bat Mitsvá, o jovem passa por um processo que inclui a imersão na mikve. Este é um ritual que fazemos aqui na ARI.
É preciso garantir um lugar de pertencimento a todos. A lição de nossa parashá, para mim, é de que devemos realmente receber aqueles que envolvemos em nossa vida comunitária. Sejam eles filhos de casamentos inter-culturais, inter-religiosos ou gerim, aqueles que escolheram o judaísmo para suas vidas. Nossa responsabilidade comunitária é fazer com que todos sejam realmente aceitos e incluídos como iguais. Assim, não haverá briga, não haverá blasfêmia, e poderemos viver em uma grande sukat Shalom, uma tenda de paz.
Hum... não... assim praticaremos o kvetch beiachad, reclamaremos juntos, e construiremos uma verdadeira comunidade judaica.
Shabat Shalom.
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