top of page

Duas narrativas, uma mensagem.

(mensagem publicada no Arinews)


Em diversos aspectos, a parashat Vaerá é uma repetição da parashat Shemot. A começar pela indicação de Moshé por Deus na cena da sarça ardente no deserto[i], e sua nomeação novamente no início da leitura desta semana[ii], desta vez no Egito. Por que ele é nomeado duas vezes? De acordo com o acadêmico Nahum Sarna[iii], a segunda nomeação é uma reafirmação ou renovação do chamado de Moshé. No entanto, muitos dos elementos encontrados em ambas as parashot, quando comparados, tornam-se problemáticos e a leitura crítica das duas narrativas leva à conclusão de que estes se originaram como dois relatos diferentes do comissionamento de Moisés.


De acordo com a Hipótese Documentária, uma versão que se tornou famosa através da obra do acadêmico Richard Elliott Friedman[iv], cada uma dessas narrativas foi parte de um documento diferente que existiu independentemente um do outro. Uma conhecida como P (narrativa sacerdotal) e outra atribuída a outra corrente não sacerdotal (não-P). É interessante comparar essas duas histórias para ver de que forma são semelhantes e de que forma diferem.


Em não-P, Moisés é um jovem hebreu, criado no palácio do Faraó, que sente a situação de seu povo e tenta defendê-lo, matando um egípcio no processo. Ele se exila e passa sua juventude em Midian com sua esposa midianita e seu sogro sumo sacerdote midianita. É lá, no exílio, com o nascimento de seu primeiro filho, que Deus vai até ele na sarça ardente e lhe diz para voltar ao Egito e libertar seu povo.


Na história de P Moshé não é um assassino que foge do Egito e se esquece do sofrimento de seu povo, não é egípcio na aparência e origem, não se casa com uma mulher não israelita e não tem associação com um sacerdote midianita. O Moshé de P não é um homem jovem e poderoso liderando uma revolta,mas um homem de quem nada sabemos, exceto sua excelente linhagem levítica, sacerdotal.


Também se torna patente a combinação de duas histórias diferentes quando analisamos a dupla nomeação de Aharon como porta-voz de Moshé. Na primeira cena[v], Moshé reclama com Deus que ele é lento na fala e na língua, e Deus responde indicando que Aharon, irmão de Moshé, será seu porta-voz. Então, no início de Vaerá[vi], Moshé novamente reclama que tem a fala dificultada, e Deus novamente responde fornecendo-lhe Aharon como porta-voz. No entanto, as duas histórias usam termos diferentes para descrever o impedimento da fala de Moisés: "fala pesada e língua pesada (כְבַד־פֶּה וּכְבַד לָשׁוֹן)" na Parashat Shemot, e "incircunciso de lábios (עֲרַל שְׂפָתָיִם)" em Vaerá.


Indo um pouco mais fundo na questão do impedimento de fala de Moshé, descobrimos que as explicações do termo não são conclusivas sobre se tratar de um problema fisiológico ou emocional. Rashi postula que Moisés tinha um problema real de fala - talvez gagueira ou ceceio severo. Hoje, no entanto, sabemos que a gagueira é um impedimento de fala de cunho emocional. O gago prevê sua dificuldade, sente a pressão, e então gagueja, conforme explica a fonoaudióloga especialista em gagueira Silvia Friedman.


Nahum Sarna explica que a natureza do problema de Moisés realmente não importa. Moisés se sentiu inadequado para se dirigir ao Faraó como agente de Deus, no entanto, "a eloquência profética é um dom divino concedido com um propósito àquele que é eleito, muitas vezes contra sua vontade, para ser o mensageiro. Nessas circunstâncias, experiência e talento são qualidades irrelevantes."


O papel de Aharon como mediador foi fundamental para o sucesso da liderança de Moshé, fazendo com que os irmãos desenvolvessem papéis complementares. A tradução de Aharon não só suavizou a gagueira de seu irmão, mas também fez uma ponte sobre uma vasta diferença existencial que existia entre Moshé e os escravos que ele foi encarregado de libertar. Moshé, criado como filho da filha de Faraó, cresceu com privilégios. Ele certamente podia sentir uma raiva justa pela amargura da servidão dos hebreus, mas seus fardos nunca foram dele. Ele nunca tinha sido um escravo. Aharon, por outro lado, foi criado como um escravo, inserido em uma família e uma comunidade de escravos.


O exemplo de Moshé e Aharon nos despojam de todas as nossas desculpas, todos os nossos fundamentos para a procrastinação e falta de autoconfiança. Deus não escolheu o mais forte ou o mais rápido ou o mais inteligente ou o mais bonito, mas uma pessoa insegura, com inabilidade de fala. Ao nomear Moshé, o homem de "lábios incircuncisos", como profeta libertador do povo escravizado em Mitsraim, Deus nos mune de esperança de que, apesar de nossas limitações e fragilidades humanas, podemos realizar tarefas únicas na vida. Acima de tudo, podemos ter a certeza de que não é necessário completar estas tarefas sozinhos, podemos e devemos contar com uma rede de apoio que nos possibilite chegar aos nossos objetivos.


Cada um de nós tem uma missão nesta vida e, apesar de todas as nossas limitações, dúvidas, e todos os problemas que parecem estar no caminho, temos a possibilidade de, como Moshé, alterar o curso da história.



[i] Shemot 3-4 [ii] Shemot 6:2-7:13 [iii] Sarna, Nahum - Exploring Exodus: The Heritage of Biblical Israel, ed. Schocken [iv] Friedman, Richar Elliott – Who Wrote the Bible, ed. HarperOne [v] Shemot 4:10 [vi] Shemot 6:12

18 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page