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Devarim - Devarim 1:1-3:22

Iniciamos um novo livro da Torá esta semana. Não qualquer livro, mas o último livro da Torá, também chamado de Mishnê Torá – a segunda Torá, cheio de histórias e mistérios acerca de sua própria existência.


Historicamente falando, apesar da atribuição literária do texto a Moshe, como seu narrador, acadêmicos identificaram o “rolo do Ensinamento” encontrado no Templo no tempo do rei Josias, como sendo o livro de Deuteronômio, atribuindo sua escrita ao século VII. Deuteronômio, escrito durante uma crise política e religiosa, reflete o desejo de proteger e preservar a integridade do judaísmo em seu tempo, trazendo renovação e adaptação conforme necessário para a situação do reino de Judá naquela época.[i]


Lendo a parashá sob a ótica tradicional, de que esta é uma narrativa de Moshe, não posso deixar de pensar no velho ditado que minha avó tanto repetia: “quem conta um conto, aumenta um ponto”. E, na realidade, nossos sábios também apontam este fato acerca do livro de Devarim, em Tosafot (comentários medievais do Talmud) lemos que o livro de Devarim é referido como Segunda Torá porque ‘revê e repete o que veio anteriormente’[ii]. Como a parashá demonstra, Sefer Devarim é mais uma interpretação do que uma repetição, levantando questões sobre até que ponto toda memória é seletiva, toda repetição é comentário.


Devarim é o conjunto dos 3 discursos finais de Moshe. Ele sabe que sua vida está no final, e logo antes de subir ao Monte Avarim, olhar a Terra Prometida e morrer nos braços Divinos, Moshe decide rever pontos marcantes de sua trajetória com o povo de Israel, e uma última vez, transmitir seus ensinamentos.


Como coloca o rabino Yitz Greenberg: “O fim iminente cristaliza para Moisés o que ele pode e deve fazer antes do fim: preservar o povo judeu. Em vez de desistir e deixar de viver, Moisés decide revisar sua vida e seus ensinamentos. Ele se concentra na narrativa da Torá e se ele a ensinou adequadamente e aplicou seus valores corretamente. A narrativa de Moisés - o livro de Deuteronômio - não é um registro de eventos anteriores. Em vez disso, é uma narrativa em que Moisés organiza seus pensamentos e dá sentido a sua carreira; isso explica por que os fatos nem sempre são os mesmos relatados nos livros anteriores.”


De certa forma as explicações convergem na ideia de que os ensinamentos da Torá devem ser revisitados para que se mantenham relevantes nos tempos em que vivemos. O Rei Josias e seus sacerdotes podem ter feito isto ao escrever Sefer Devarim e trazerem como uma narrativa última de Moshe. Mas também podemos tirar esta mesma lição se aceitarmos a narrativa tradicional, nas palavras da acadêmica Ilana Kurshan “Como Moshe entendeu, quando interpretamos a Torá de nossa perspectiva e através das lentes de nossa experiência, garantimos que ela permaneça relevante e vital. Quando Moshe “expõe” a Torá no livro de Deuteronômio, ele não está apenas revisando o passado; ele também está nos mostrando como o passado continua a nos moldar.”[iii]


Entre um livro e outro da Torá há um espaço em branco, como um momento de pausa para tomarmos um fôlego, organizarmos nossa perspectiva, e continuarmos a narrativa. O Chazan Evan Kant traz em seu comentário à parashá a ideia de que “é aqui neste espaço que encontramos admiração, inspiração, mudança pessoal e comunitária e, muitas vezes, o poder de seguir em frente, de encontrar o desconhecido. Na Torá, é onde começamos a deixar o deserto e rumo à Terra Prometida. Para [ele], o encontro com este espaço liminar [do livro de Devarim] é um despertador do calendário, lembrando que Rosh Hashaná está se aproximando.”


Nos aproximamos do momento mais marcante de nosso calendário, quando faremos o balanço de nossas vidas neste ano. Passaremos pelo mês de Elul declamando diariamente “Hashiveinu v’nashuva – Nos retorne para que possamos retornar”, fazendo heshbon hanefesh – o balanço da alma. Como Moshe, contaremos os acontecimentos de nossas vidas sob nossa perspectiva, nos alegraremos, nos arrependeremos, e encontraremos momentos pelos quais precisaremos nos desculpar com os outros.


Na haftará, a visão do profeta Isaías que nomeia este Shabat Hazon, diante da visão de destruição de Jerusalém e da dispersão do povo, nos traz a palavra Divina: “Que necessidade tenho de todos os seus sacrifícios? ... Quem te pediu isso? ... Aprendam a fazer o bem. Dediquem-se à justiça; ajudem os injustiçados. Defendam os direitos do órfão; defendam a causa da viúva.” Atos rituais sem kavaná, sem intenção, não são suficientes. O profeta Isaías traz todo o ensinamento revisto para a ideia de que é preciso entender e dar significado renovado à nossa tradição.


“Conforme aprendemos com o discurso final de Moshe, a maneira como nos lembramos de nossa história e a maneira como recontamos nossas histórias determina as pessoas que somos hoje e as pessoas que nos tornaremos.” Somos convidados diariamente, mensalmente, anualmente, a revermos nossos atos, a revisitarmos nossas histórias e nossas tradições, e trazermos novos sentidos que nos sejam relevantes nos dias de hoje, para garantirmos a continuidade de nossa narrativa, para nos assegurarmos de que fomos e seremos as melhores versões de nós mesmos, e que contribuímos da melhor maneira para nossa tradição judaica.


Shabat Shalom!



[i] The Jewish Study Bible, Oxford University Press [ii] Tosafot em Gittin 2a [iii] https://drive.google.com/file/d/1SnpmWy56R-CSBJexeqvP9d4rCXcDFy70/view

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