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De volta à Europa

Atualizado: 19 de jun. de 2022

Esta semana lemos, na parashat Behaalotcha, que Aharon e Miriam questionam as habilidades de seu irmão, Moshé. Em uma clássica briga fraternal, falam sobre o irmão não ser o único profeta no povo, sobre as escolhas para a vida pessoal. Humanos, como todos nós, brigam e se machucam; como irmãos, quando um deles, Miriam, está em apuros, se unem novamente. Toda família tem situações delicadas com as quais lidar. Toda família precisa buscar sua reconciliação.


Guerras, pogroms e inquisições muitas vezes levaram os judeus para os braços do cristianismo ou do islamismo, muitos para conservar seus costumes em segredo. Outros, no entanto, que realmente abraçaram uma nova religião, por medo, convicção ou revolta.


Minha bisavó, e somente ela em minha família, foi uma destas judias que se converteram ao catolicismo por revolta. Ela entendia que tudo o que aconteceu de errado na vida dela devia-se ao fato de ser judia. Mais tarde, acredito que tenha se tornado uma católica convicta e, pelo que sei, praticante.


Quando pequena, visitávamos minha bisavó regularmente. Lembro do apartamento escuro, dos deliciosos biscoitos amanteigados e da Coca-Cola, que eu só podia beber lá, já que na minha casa nunca tínhamos refrigerante. Assim, distante e presente, germanicamente formal, era a relação que tínhamos com ela.


Minha avó, Oma Carla, foi muito feliz aqui no Brasil. Dizia que a terra brotava, gerando árvores e frutos. Aqui foi feliz: casou-se, teve filhos e netos, uma vida plena. No entanto, a mãe dela, como muitos outros alemães que imigraram forçadamente durante a guerra, não gostava daqui. Andava de luvas por causa da sujeira, não aprendeu a língua, era infeliz. Ela sempre desejou voltar para a Europa.


Conforme lemos no Talmud, Rabbi Iochanan,[i] ensina que "é uma mitsvá realizar as intenções dos mortos". Assim, quando a Oma Lili faleceu, em setembro de 1991, em um final de Iom Kipur, nós, sua família judia, fomos incumbidos de enterrá-la em um cemitério católico, onde ela ficou sem nunca ser visitada até o início deste ano, quando o cemitério entrou em contato conosco. Precisávamos pagar despesas e decidir o que fazer com os espaços extras que tínhamos no cemitério.


A tradição rabínica do Talmud sustentava que, apesar da morte do corpo, a pessoa essencial alojada no corpo ainda desfrutava de alguma existência além-túmulo, de modo que era necessário um enterro adequado e respeito contínuo pelo falecido – Kavod haMet. Instintivamente, foi este conceito que levou minha família a pensar em dar um novo destino para a Oma Lili. Depois de reuniões, telefonemas, e-mails e mensagens, decidimos pela exumação e cremação. Algo que é estranho para nossa tradição judaica, mas que fazia todo o sentido para aquela pessoa que, se ainda estivesse minimamente ali, como acreditavam os sábios do Talmud, estaria triste, presa a uma terra que nunca amou, sozinha, sem nunca ser visitada.


A tradição judaica, em diversas fontes ao longo do tempo se manifestou contra a cremação. No entanto, consta do Tanach, no livro de Samuel[ii], que o Rei Saul e seus filhos foram cremados. De acordo com o comentarista bíblico francês do século XVII, Radak, baseado nesta passagem bíblica, a cremação é permitida quando é feita para honrar os mortos. Apesar de minha bisavó ter escolhido não ser judia, como estudante de rabinato, me tranquiliza encontrar algo em minha tradição que apoie a nossa decisão.


Então, nesta última segunda-feira, eu e minhas tias fomos à praia com as cinzas de minha bisavó. Juntas lembramos de histórias boas, ruins, enervantes e engraçadas a seu respeito. Rimos e nos emocionamos, jogamos suas cinzas no mar e dissemos: “nade para a Europa, Oma!”


Behaalotcha fala também de segundas chances. Quem não pode celebrar Pessach porque estava impuro, tem um mês depois a chance de celebrar Pessach Sheni. Como na família mais poderosa da Torá, brigamos e podemos nos reconciliar. Durante nossas vidas somos agraciados com possibilidades de reparar situações passadas, segundas-chances acontecem na realidade. Segunda-feira, quase 31 anos após a morte de minha bisavó, foi nossa segunda chance, e também da Oma Lili. Nossa de dar a ela um destino mais condizente com o que ela desejou em sua vida. Dela, de se livrar da terra que nunca amou, e ir para o mar: um lugar onde sempre vamos visitar, onde talvez, algum pedacinho dela chegue de volta à sua tão amada Europa.


Shabat Shalom.




[i] Gittin 40a:8 [ii] Samuel I, 31:12-13

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