top of page

Como você está?

“Devo ser feita de água.

Não tenho mais nada além de lágrimas.


Filhas. Mães.

Meu espírito doendo.

Irmãs. Irmãos.

Um coração partindo.

Devo ser feita de água.

Não tenho mais nada além de lágrimas.


Sangue e terror.

Crianças morrendo.

Medo e raiva.

Tanto choro.

Devo ser feita de água.

Não tenho mais nada além de lágrimas.


Ah, essa tristeza,

Silêncio uivando.

Ah, essa dor no coração,

Terror rondando.

Devo ser feita de água.

Não tenho mais nada além de lágrimas.


Não apenas água.

Estas lágrimas me alimentam.

Meus ossos são de ferro.

Meu povo precisa de mim.”[i]


Este é um poema do liturgista americano radicado em Jerusalém, Alden Solovy, que há três semanas vem escrevendo obsessivamente. Diariamente recebo palavras cheias de emoções, às vezes contraditórias, que refletem a alma do israelense nestes tempos absurdos, que são o espelho da alma do judeu do mundo.


Há três semanas eu perdi as palavras. Eu, que sempre me manifestei ativamente nas mídias sociais, que sempre fiz minhas ideias públicas, passei a ler obsessivamente, assistir notícias quase sem limites, absorver toda a dor, ódio, tristeza e rancor que inundavam meu celular. Eu não podia mais respirar. Parei. Senti que o mundo precisava de amor, e pensei em publicar preces para ajudar a alma das pessoas, mas eu não tinha ar ou palavras. Então, passei a falar com as pessoas, procurar meus amigos, família, gente com quem não falava há muito tempo, ou gente que eu falo regularmente.


Como você está?


Desde Israel, as respostas foram as mais diversas. “Estou bem, mas o mundo não”, “Estou cozinhando para os soldados, você pode contribuir?”, “Estou indo para miluim”, “quero falar, mas não tenho tempo. Agora tenho tempo, mas já não quero falar”, “Vamos matar todo mundo!”, “Não consigo mais ligar a TV”, “Obrigada, eu precisava deste carinho”.


De Londres, meus alunos contaram que tinham medo, que não entendiam. “Por que todos querem nos matar?” aos 11 anos as perguntas são sinceras e difíceis de serem respondidas. Eu não sei, e não sei se alguém realmente sabe.


Do Brasil veio a pergunta: “Por que você não está postando nada? Por que os rabinos estão tão quietos?” A pergunta foi diretamente ao coração. A resposta imediata foi que estamos tentando cuidar das pessoas, porque as pessoas estão postando, replicando, inundando o mundo de informações. O mundo precisa saber. A história não vai se repetir!


Como você está? Estou sem ar, estou sem palavras.


A Torá traz inúmeras palavras que circundam a nossa realidade... Nesta semana lemos sobre o momento em que Deus promete a terra a Avraham e seus descendentes. Seremos mais numerosos que as estrelas do céu. A terra não estava desabitada, os canaanitas habitavam o lugar que nos foi prometido. E a partir de então nossa relação com aquele lugar tão especial começou. Mas, para chegar àquela terra Avraham precisou sair do lugar do seu pai, construir uma nova história para si mesmo. Lech lechá: “saia”, “vá em frente” ou, literalmente, “vá a si mesmo”. Lech lechá – olhe para dentro, pondere.


Como você está?


Ao longo desta parashá nasce Ishmael, o primeiro filho de nosso patriarca. Nasce a rivalidade entre Sarah e Hagar. Nasce a promessa de um filho para Sarai, a esposa que é incluída no pacto entre Avraham e Deus e passa a se chamar Sarah. Nasce a rivalidade entre dois povos.


Elie Wiesel escreveu em 1986: “Sara acreditou em Deus e em Sua promessa; portanto, ela sofreu por sua própria bondade. E porque Sara sofreu, ela infligiu sofrimento. Ela estava errada? Talvez, mas mesmo assim amamos Sarah. Talvez amemos Sarah ainda mais. Em outras palavras: porque Sarah estava errada e sabia disso, mas não podia evitar, torna-se nosso dever fazer o impossível e corrigir sua falha sem diminuí-la. Somos seus filhos e isso é o mínimo que poderíamos fazer por ela. Se ao menos Sara pudesse ter compartilhado seu amor entre Itzhak e Ishmael! Se ao menos ela pudesse tê-los unido em vez de separá-los! Talvez algumas das tragédias de hoje tivessem sido evitadas. O problema palestino está enraizado na separação destes dois irmãos. Como sempre devemos perguntar: a culpa é da mãe?”[ii] Confesso que Dona Carla, minha avó, de abençoada memória, acreditava que sim.


E assim, perpetuando a história, há três semanas nossas certezas caíram por terra. Israel não é um lugar seguro para onde fugimos, mas o lugar em perigo, ao qual alguns de nós voaram para proteger. Há três semanas o antissemitismo tirou a máscara e nos colocou em risco no mundo inteiro. E na cacofonia das postagens obsessivas que reproduzimos deixamos de olhar para dentro, deixamos de ir para nós mesmos e nos perguntarmos: Como você está?


Devo ser feita de água.

Não tenho mais nada além de lágrimas.

Não tenho ar e não tenho palavras.


Então me agarro na promessa Divina, feita a Avraham:

“Farei de você uma grande nação,

E eu te abençoarei;

Farei com que o seu nome seja grande,

E você será uma bênção.

Eu abençoarei aqueles que te abençoarem

E amaldiçoarei aquele que te amaldiçoam;

E todas as famílias da terra

Se abençoarão por você.”


Shabat Shalom





[i] Alden Solovy - Nothing Left but Tears - https://tobendlight.com/2023/10/nothing-left-but-tears/ [ii] Elie Wiesel, "Ishmael and Hagar," in "The Life of Covenant: The Challenge of Contemporary Judaism" Essays in honor of Herman E. Schaalman," edited by Joseph A. Edelheit, Chicago, Spertus College of Judaica, 1986, pp. 235-250.

53 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page