Shabat Shirá, o shabat em que nos concentramos em cantar e agradecer pelas vitórias, pelas conquistas, pelas bênçãos. Um shabat em que a música tem um papel importante, e as mulheres aparecem liderando, cantando, dançando e tocando tambores.
Com tanta alegria e “purpurina” às vezes passamos sem nos ater ao fato de que no texto, Deus endurece o coração do Faraó para que os egípcios possam perseguir os bnei Israel, o que os leva a morrer nas águas do mar, com cavalos, carros e todo o seu poder. Uma cena avassaladora, que deve ter sido absurdamente assustadora para os escravos recém liberados, enfraquecidos e meio perdidos nesta nova possibilidade de vida sem ordem e opressão.
O que fazem então os bnei Israel? Cantam, primeiro só cantam, e depois, com Miriam cantam e dançam. Prefiro entender que o canto aqui, além de servir de prece e agradecimento, serviu para fazer com que o povo, assustado, se movesse e não fosse engolido pelo mar. Mas o festejar, diante da morte do outro, mesmo sendo o outro seu opressor, incomoda.
Neste sentido, Rabbi Yochanan explica em Megillah 10b: “o Santo, Bendito seja Ele, disse: O trabalho das minhas mãos, os egípcios, estão se afogando no mar, e você deseja dizer canções? Isso indica que Deus não se alegra com a queda dos ímpios.” Indicando que, apesar de ter causado o endurecimento do coração do Faraó, ter fechado o mar e causado a morte daquelas pessoas, Deus sofreu com o acontecido, porque viu sua obra, seus filhos, serem destruídos.
Da mesma forma, na haftará, uma frase me dói no coração: Pela janela espiou a mãe de Sísera, Atrás da treliça ela choramingou: “Por que a carruagem dele demorou tanto para chegar? Por que o barulho de suas rodas tão tarde? " (Juízes 5:28). O coração angustiado da mãe que espera seu filho voltar, sabendo que há algo errado. Sisera foi morto por Yael, salvando os israelitas e causando a vitória da batalha. O registro da dor da perda desta mãe é tocante, e de certa forma, extremamente feminino no texto.
Lembro da minha avó, que perdeu uma filha jovem, vítima de câncer. Ela me dizia que esta é uma dor da qual nunca nos curamos, acostumamo-nos a viver com ela. Vejo a mãe de Sisera, e por pior que ele seja, me compadeço dela e de sua dor. Me compadeço da dor de todas as outras mães que perderam seus filhos no mar. E então meu pensamento voa para Israel, um país que, apesar de não estar em guerra, tem todos os seus jovens servindo o exército. Um país de mães com o coração na mão, olhando na janela o momento em que seus filhos voltam para casa.
Mas em verdade, eu não preciso ir até o outro lado do oceano. A violência no Brasil mata diariamente. Os números são assustadores. Antes da pandemia, quando meus filhos saíam à noite e voltavam de Uber era eu quem esperava o barulho da chegada deles em casa, o beijo (meio fedorento) que me dava um calor no coração e um alívio enorme: minha cria chegou.
Nos textos desta semana aprendemos a agradecer e celebrar nossas bênçãos, sem, no entanto, deixarmos de enxergar a dor e sofrimento, a perda do outro.
Sigamos cantando.
Shabat Shalom.
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