Iniciamos novamente, desde o princípio – Be Reshit - Nesta porção da Torá, Deus cria o mundo, os seres vivos e os humanos. Adam e Eva (Hava) comem o fruto da árvore de todo o conhecimento, são banidos do Jardim do Éden, condenados a terem dor e sofrimento, ela na gravidez e parto, ele no trabalho da terra. Mais tarde, Caim mata Abel, a maldade dos seres humanos se alastra pela terra, e Deus então considera destruir toda a Criação.
O livro de bereshit é um mar de histórias, assuntos grandes e pequenos sobre os quais falar, Gan Eden para dvar torá e prédicas! Mas hoje, meu pensamento parou logo no comecinho: “Bereshit bará Elohim” – No início Deus criou. É nesta primeira frase do primeiro livro da Torá que começa o questionamento. Início do quê? Deus estava antes do início? Por que criar o mundo, se já havia algo antes?
Maimônides entende que o mundo foi criado a partir do nada, que antes só existia Deus, sozinho. Philo, que podemos considerar como o primeiro filósofo da tradição judaica, entende que, o homem é elemento fim da criação, ele entende que tudo o que foi criado antes do homem era como um projeto. Deus planejou o mundo visível, formou o mundo que é passível de ser compreendido, para receber a criatura feita à semelhança divina, que tornaria todo aquele projeto realidade. Para Philo, a compreensão do mundo o torna real.
O pensamento acerca da criação pode tomar diversos caminhos, mas sempre nos leva à criação do homem e seu motivo. A ideia de que o homem torna a criação real e é o objetivo final da criação, nos faz refletir acerca da questão da semelhança Divina. Tanto Philo quanto Maimônides se apressam em explicar que a semelhança não é corpórea. Philo esclarece “nem Deus tem forma humana, tampouco o humano tem seu corpo como Deus.” A semelhança do homem com o Divino está, para Philo, na mente, no elemento soberano da alma, que é onde a palavra imagem é utilizada. Já para Maimônides, o homem possui características bastante diferenciadoras, como sua capacidade intelectual, sua capacidade de opinião, sua possibilidade de escolha, que não requerem qualquer instrumento específico: são incorpóreos, à imagem e semelhança Divina. E é justamente a semelhança divina, a possibilidade de ter uma opinião e fazer uma escolha, que leva ao primeiro ato de desobediência humana.
A comparação dos pensamentos de Philo e Maimônides nos leva a concluir que a história da criação, de acordo com a Torá, traz os fundamentos para o pacto Divino feito no Sinai. Esta é também a teoria do pensador contemporâneo, David Hartman, que propõe que liberdade de Deus, responsabilidade humana e interdependência de Deus e humanidade seriam os três fundamentos básicos tratados na criação que fundamentam a entrega dos mandamentos no Sinai.
De acordo com Hartman, a liberdade de Deus se comprova da decisão da criação em si: Deus, que antecede a criação, decide intervir ativamente e iniciá-la. O universo vem à existência por decisão única e exclusivamente Divina.
A responsabilidade humana deriva de sua criação ‘à imagem e semelhança Divina’. Esta característica atribui ao humano a liberdade de escolha, espontaneidade e capacidade de deliberação, o que consequentemente faz com que ele responda por seus atos. Ao escolher fora dos mandamentos do jardim do Eden, sofre as dramáticas consequências de sua escolha.
A interdependência de Deus com o humano deriva tanto da questão levantada por Philo da necessidade da capacidade cognitiva para colocar em efeito a criação, como da possibilidade de a decisão humana mudar o curso da história e do projeto Divino para os acontecimentos. Há um projeto, mas há também um plano B, e às vezes há apenas a ira Divina diante dos acontecimentos. Como um pai, Deus abre o espaço para que o humano aja de acordo com sua possibilidade de escolha, não muda a natureza humana por milagres; às vezes aceita a decisão humana, às vezes pune a escolha fora do combinado.
Portanto, a entrega de um código legal no Sinai, formador do povo de Israel, indica que Deus não vê no homem uma marionete que fará tudo de acordo com o planejado, mas é uma promessa de respeito à liberdade de escolha do humano, com a indicação clara das consequências destas escolhas.
“Bereshit bará Elohim” - No início, Deus criou. Criou para que o humano, homem e mulher, habitassem o criado e possibilitassem sua existência. Criou para dar o espaço e a liberdade para que para que a humanidade, com suas ações e inações, com todo o seu poder intelectual de aprendizado e escolha, continuasse a criar. Cabe ao humano usar com sabedoria esta habilidade.
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