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Behar / Bechukotai - Vaicrá 25:1-26:2 / 26:3-27:34

Terminamos o livro de Vaicrá, levítico, com as parashot Behar e Bechukotai. Genericamente, enquanto a primeira fala em justiça social e liberdade, a segunda fala de obediência, recompensa e castigo, promessas e dízimos. Qual é o elo entre estas parashot?


אם-בחקתי תלכו (im bechukotai telêchu) se em minhas leis vocês caminharem. Assim inicia a descrição de todas as bênçãos que recairão sobre aqueles que caminharem através das leis, regras e ensinamentos da Torá. Uma lista simples, sem muita criatividade. ואם-לא ת'מעו לי (veim lo tishmeu li) mas se não me escutarem e não fizerem todas estas mitsvót, uma lista enorme e excepcionalmente criativa de castigos acontecerão com vocês. A lista é realmente assustadora; por exemplo se a fertilidade é uma bênção[i], o castigo é comer a carne de seus filhos e filhas![ii] Não há imagem mais dolorida para uma mãe do que a ideia de que seu desespero possa ser tão profundo que a leve a um ato como este. O argumento é absoluto, ok, vamos cumprir as mitsvót, os ensinamentos, regras, leis, tudo, e então nada de mal vai nos acontecer.


No entanto, a teologia da recompensa e castigo é absolutamente falha para quem olha a vida com racionalidade, para quem vê coisas terríveis acontecerem a pessoas essencialmente boas, ou que ainda nem tiveram a chance nesta vida de descumprir as mitsvót. A acadêmica americana Elen Frankel traz este questionamento em seu livro “The Five Books of Miriam” (os cinco livros de Miriam[iii]):


Nossas Filhas perguntam: Moisés avisa ao povo que coisas terríveis acontecerão se eles falharem em cumprir as leis de santidade de Deus: Eles enfrentarão a ruína e a destruição, e as nações do mundo irão esmagá-los entre as pedras de moinho da história. Como está escrito: “Dez mulheres assarão seu pão em um único forno e distribuirão por peso”, mas mesmo essas medidas não conseguirão satisfazer a fome do povo? De onde vêm essas imagens horríveis ...?


Nossas mães acrescentam: Essas imagens lembram nossa recente quase destruição, quando até mesmo cem mulheres não podiam encher um único forno com pão, mas em vez disso entraram nos fornos e alimentaram as chamas famintas.


Lilith, a rebelde, grita: Mas não foi nosso fracasso que levou ao Holocausto. Foi de Deus! Onde estava Deus quando estávamos sofrendo?


Mãe Rachel acrescenta: E onde estava o resto do mundo?


As questões de sofrimento, ausência divina e responsabilidade humana desafiaram diversos comentaristas tradicionais e teólogos contemporâneos. Mas é a pergunta proposta em nome da matriarca Rachel que me leva à parashá Behar, como resposta ao meu próprio questionamento a este respeito.


Esta parashá traz dois conceitos inovadores do judaísmo: Shmitá e Yovel. Shimtá é o ano sabático, que ocorre a cada 7 anos, em que a terra deve descansar, não deve ser plantada e as pessoas devem viver de sua produção selvagem; a propriedade da terra é retirada das mãos dos homens; e todas as dívidas devem ser canceladas. Yovel, o ano do jubileu, ocorre a cada 50 anos, quando os escravos e escravas israelitas, mesmo aqueles que escolheram ser escravos, devem ser libertados; e todas as terras adquiridas devem ser devolvidas à família que originalmente as possuía. Como ensina a rabina americana Sharon Brous “A mensagem de shmitá e yovel é que a disposição da terra, suas riquezas e seus cidadãos pertencem a Deus, e os humanos só têm permissão para interferir nessa disposição temporariamente.”[iv]


Mais do que tudo, Shmitá e Yovel são oportunidades cíclicas de correção de desigualdades de riqueza e gênero, trazendo igualdade para todos: mulheres e homens, livres ou escravos. É preciso lembrar que a posse da terra era um privilégio masculino naquele tempo, a sociedade era agrária, então esta posse gerava para as mulheres a dependência financeira e social dos homens. Contudo, no ano de shmitá, a terra não pertencia a ninguém, e todos viviam do que colhiam do produto do crescimento orgânico da terra, de maneira igualitária. Idealmente, estes conceitos criam uma igualdade completa, na qual as distinções de gênero e classe não serviriam mais como obstáculos à oportunidade, em que todas as pessoas têm igual acesso à generosidade Divina.


Estamos chegando a Shavuot, quando lemos a Meguilat Ruth. Ruth se refere a si mesma como uma amá, uma serva, quando fala com Boaz[v], a mesma palavra que encontramos na parashát Behar. Embora seja viúva, pobre e estrangeira, ela possui meios para mudar sua realidade. Ruth colhe nos campos de Boaz, como previsto na parashát kedoshin, ela eventualmente se casa com Boaz, em cujos campos ela fazia colheita, ela se torna ancestral de um rei - sua posição social é literalmente invertida. É justamente um igualitarismo divinamente ordenado, que lhe dá liberdade para mudar seu status e escolher sua identidade religiosa, seus companheiros de vida e sua herança, em vez de permitir que essas coisas lhe sejam determinadas pelas pessoas ao seu redor. A Torá nos apresenta a ideia de que as normas sociais existentes são temporárias, que podemos mudá-las a fim de melhorar nossas vidas econômica e espiritualmente.


Mais ainda, todas estas possibilidades não acontecem automaticamente, mas dependem da ação humana. A viúva precisa ir ao campo para colher seu alimento; o produtor precisa trabalhar a terra para ser abençoado com uma boa colheita, e depois precisa deixar a terra descansar. O tecido social precisa funcionar de maneira a permitir que todas estas ferramentas sejam possíveis.


Cumprir mitsvót como o texto bíblico menciona, não necessariamente significa o que hoje entendemos como mitsvót, que é o produto do pensamento rabínico talmúdico. Bênçãos acontecem porque dedicamos nossa energia em produzir e fazer algo bom, as coisas ruins acontecem por diversos motivos, às vezes alheios à nossa compreensão. Nosso papel humano é trabalhar e nos engajar para que eles não aconteçam, ou para que seus efeitos sejam abrandados. Talvez, seguir o caminho das mitsvót simplesmente queira dizer que devemos buscar como objetivo, mais do que o detalhe, o caminho em si: amar ao próximo, cuidar do desfavorecido, prezar pela liberdade. Porque, como a Torá nos relembra inúmeras vezes, fomos escravos em Mitzraim.


Chazak, Chazak, veNitchazek


[i] וּפָנִ֣יתִי אֲלֵיכֶ֔ם וְהִפְרֵיתִ֣י אֶתְכֶ֔ם וְהִרְבֵּיתִ֖י אֶתְכֶ֑ם וַהֲקִימֹתִ֥י אֶת־בְּרִיתִ֖י אִתְּכֶֽם׃ I will look with favor upon you, and make you fertile and multiply you; and I will maintain My covenant with you. [ii] וְהָלַכְתִּ֥י עִמָּכֶ֖ם בַּחֲמַת־קֶ֑רִי וְיִסַּרְתִּ֤י אֶתְכֶם֙ אַף־אָ֔נִי שֶׁ֖בַע עַל־חַטֹּאתֵיכֶם׃ I will act against you in wrathful hostility; I, for My part, will discipline you sevenfold for your sins. [iii] Não traduzido para o Português [iv] Rabbi Elyse Goldstein. The Women's Torah Commentary . Turner Publishing Company. Kindle Edition. [v] Rute 3:9

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