Na parashá desta semana, Balak, o rei de Moab, convence Bilam, o feiticeiro, a amaldiçoar os israelitas para que ele possa derrotá-los e expulsá-los da região. No entanto, Bilam abençoa os Filhos de Israel e profetiza que os inimigos de Israel serão derrotados. Deus pune os israelitas com uma praga por se associarem com as mulheres moabitas e seu deus. A praga é extinta depois que Pinchas mata um homem israelita e sua mulher midianita.
Esta é uma parashá que eu, particularmente, não gosto. Em especial porque a maioria dos comentários sobre esta parashá falam da história de Bilam e sua jumenta, e ignoram o final da parashá, em que 24 mil bnei Israel são mortos pela praga e pela espada daqueles que se diziam guardar as palavras da Torá. Os poucos comentários que falam sobre esta parte do texto, apoiam o extremismo e culpam os supostos desvios dos homens às mulheres estrangeiras, que seduzem os homens e fazem com que eles cometam pecados.
Conforme aponta o Professor Itamar Kislev[i], a história tem uma série de inconsistências narrativas, tais como:
1. A história começa com os israelitas fornicando com mulheres moabitas. Mais adiante, sem explicação ou introdução, aparece uma mulher midianita. Como ela foi parar na história?
2. Uma segunda surpresa diz respeito ao pecado. Na primeira metade do capítulo, a história é sobre como a fornicação com mulheres moabitas leva à adoração de seus deuses. Na segunda metade, desaparece a preocupação com a idolatria. O homem israelita pega a mulher midianita e eles entram na tenda. O texto sugere o que eles estão fazendo lá dentro, mas não inclui a adoração de ídolos.
3. Outra dificuldade diz respeito à punição. Deus diz a Moisés para executar todos os líderes, pois foram responsáveis por deixar o povo pecar. No entanto, de acordo com a história, Moisés ordena aos juízes de Israel que matem todos os homens envolvidos com Baal Peor. Moisés se desvia do comando divino e decide vez de matar os líderes, punir os pecadores.
Tais confusões no texto acabam por gerar conclusões bastante distorcidas sobre a moral que esta história sangrenta tem a nos trazer.
O comentarista do século XII, Ramban[ii], explica “Ele [Deus] está dizendo que o que aconteceu como resultado do desejo de prazer sexual que existe naturalmente em homens e mulheres desde a juventude, foi apenas um plano maligno para levá-los ao erro [para adorar Baal-peor]”. Assim, o pecado foi a adoração de Baal-Peor, orquestrada por Bilam, que posteriormente é punido por seu ato.
No entanto, alguns comentaristas modernos, utilizam uma linguagem muito mais agressiva, aplicando preconceitos e extremismos, de certa forma, como fez Moisés. Esta é a linha adotada pelo rabino ortodoxo Zvi Shimon[iii]: “As mulheres moabitas pegaram os israelitas no auge de seus desejos e depois os convenceram a adorar seu deus. A luxúria dos israelitas os venceu a ponto de excluir o funcionamento racional. Eles fariam qualquer coisa para satisfazer seus desejos sexuais, até mesmo cometer idolatria. ... a Torá prenuncia que a tomada de esposas estrangeiras inevitavelmente levará à adoção de diferentes culturas e crenças estrangeiras. O israelita alegará que não está virando as costas para sua fé, que ele e sua nova esposa permanecerão leais a Deus e à Sua Torá. No entanto, em pouco tempo, o israelita está adorando com sua nova esposa um novo deus, celebrando diferentes festivais e adotando um novo estilo de vida.”
Este comentário traz em si um perigo muito grande. Primeiro, o medo do estrangeiro, que justifica atos extremos como o de Pinchas, que pegou a espada e matou o israelita e sua esposa midianita, sem que houvesse qualquer tipo de provocação pessoal direta (que também não justificaria o ato violento). Mas também a culpabilidade da mulher pelos impulsos do homem. E é justo na ortodoxia que vemos este comportamento, através de regras cada vez mais extremas de tsniut (que poderíamos traduzir por recato), em que as mulheres são obrigadas a cobrirem seus corpos mais e mais, ao ponto de haver mulheres em bairros ultra-ortodoxos vestindo burcas.
Em uma semana em que, no Brasil, fomos atacados pelas imagens de um anestesista que abusava de suas pacientes sedadas, e que, em Israel, a parte igualitária do Kotel foi invadida por jovens ortodoxos que destruíram sidurim, agrediram um sobrevivente da shoá além de outros presentes no local, que estavam lá para um Bar e Bat Mitsvá, é preciso tomar muito cuidado com quais lições tiramos da parashá Balak. Em especial, é preciso não evitar o assunto trazido pela parashá, porque o próprio texto bíblico nos avisa que devemos abrir os olhos para o que está no caminho.
“Talvez Pinchas devesse ter aprendido com Bilam. Ele via o relacionamento entre um israelita e uma midianita como uma maldição, mas poderia tê-la transformado em uma bênção.” Convoca o rabino americano Kerry Olitzky. Nós, hoje, podemos nos inspirar nas palavras do profeta Michá, que lemos no texto da haftará:
“וּמָֽה־יְהֹוָ֞ה דּוֹרֵ֣שׁ מִמְּךָ֗ כִּ֣י אִם־עֲשׂ֤וֹת מִשְׁפָּט֙ וְאַ֣הֲבַת חֶ֔סֶד
E o que o Senhor requer de você: somente fazer justiça e amar a bondade”
Que possamos olhar o outro com bondade, que possamos perseguir a justiça, e jamais justificar atos de extremismo e maldade.
Shabat Shalom.
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