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As Cores do Judaísmo

Esta semana começa a primeira das arba parshiyot (as quatro porções da Torá), que são lidas nas semanas que antecedem Pessach. Cada uma das quatro porções da Torá tem um nome especial, e todas as quatro precedem o Shabat que cai logo antes de Pessach - Shabat HaGadol (O Grande Shabat). O Shabat de hoje é chamado Shabat Shekalim. Shekalim é o plural da palavra hebraica shekel, a moeda usada pelos antigos israelitas e também a moeda de Israel hoje. Nos tempos bíblicos, todo israelita do sexo masculino, com 20 anos ou mais, tinha que contribuir com meio shekel anualmente para a manutenção do Templo em Jerusalém. “O rico não deve pagar mais e o pobre não deve pagar menos do que meio shekel” estipula a Torá.


Meio shekel era uma quantidade muito pequena, insuficiente para o mais básico dos sacrifícios, mas que traz em si uma lição imensa de pertencimento comunitário: לֹא-טוֹב הֱיוֹת הָאָדָם לְבַדּוֹ (lo tov heiot adam levado – não é bom ao humano estar sozinho). Nenhum de nós é inteiro sozinho, é preciso estar em comunidade.


Conta a história que havia um antropólogo que estava estudando os hábitos e a cultura de uma remota tribo africana. Na véspera de sua volta para casa, ele montou uma cesta com deliciosas frutas da região e as embrulhou com uma fita. Colocou a cesta debaixo de uma árvore e então reuniu as crianças da aldeia. Ele traçou uma linha na terra, olhou para as crianças e disse: “Quando eu mandar vocês começarem, corram até a árvore e quem chegar lá primeiro vai ganhar a cesta das frutas”. Ele contou: um, dois e já! Algo surpreendente aconteceu: as crianças se entreolharam, pegaram as mãos uns dos outros e correram juntos para a árvore. Em seguida, eles se sentaram juntos ao redor da cesta e desfrutaram do prêmio como um grupo. O antropólogo ficou impressionado, e perguntou por que todos foram juntos, quando um deles poderia ganhar todos os frutos para si. Uma menina olhou para ele e disse: "Como um de nós pode ser feliz se todos os outros estão tristes?"


Anos depois, o Arcebispo sul-africano Desmond Tutu explicou o pensamento da menina: “Os africanos têm uma coisa chamada ubuntu. Acreditamos que uma pessoa é quem é por meio de outras pessoas. Que minha humanidade está presa, intimamente ligada, à sua. Quando eu desumanizo você, eu me desumanizo. O ser humano solitário é uma contradição em termos. Portanto, você procura trabalhar para o bem comum, porque sua humanidade ganha vida na comunidade, no pertencimento. Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para os outros. Afirmando os outros, não se sente ameaçada de que os outros sejam capazes e bons. Uma autoconfiança que vem de saber que pertencemos a um todo maior e somos diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos.”


Desde 1970 o mês de fevereiro é marcado como o Black History Month, mês da história negra nos Estados Unidos, criado para chamar a atenção para as contribuições dos afro-americanos àquele país. O mês homenageia todos os negros de todos os períodos da história dos EUA, desde os primeiros escravos trazidos da África no início do século 17 até os afro-americanos que vivem nos Estados Unidos hoje. A comunidade judaica reformista estadunidense vem trabalhando fortemente, nos últimos anos, para dar foco, voz e ativismo aos “Jews of color”, que inclui negros, latinos, asiáticos e tantas outras cores da paleta que pinta e constrói a nossa comunidade judaica. Aqui no Brasil ainda não chegamos neste momento; ainda estranhamos as cores diferentes que salpicam em nossas congregações.


Assim como não há uma maneira correta e verdadeira de ser judeu e praticar seu judaísmo, não há uma única cor ou linha de características físicas que determinam o povo judeu. Ou como explica a líder judia americana Yolanda Savage-Narva: “Quando penso na negritude, penso na riqueza do solo e como ela nutre tudo o que ali é cultivado. Eu acho que minhas raízes negras têm o mesmo poder e dentro desse poder, nós, como líderes judeus, podemos multiplicar o efeito dos valores judaicos também.”


Ubuntu é “a crença em um vínculo universal de compartilhamento que conecta toda a humanidade”, é saber que a minha humanidade só existe se eu propiciar a mesma humanidade ao outro. “Permita que eu fale, não minhas cicatrizes” roga Emicida em sua música AmarElo. Sejamos atores das mudanças que propiciam o pertencimento de todos à nossa sociedade, à nossa comunidade. Tenhamos sempre essa atitude dentro de nós, compartilhando com os outros nossas lutas e conquistas, sejamos meio shekel. Encontramos valor na comunidade. Encontramos nossa humanidade em pertencer.

Eu sou porque nós somos.

Ubuntu.

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