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Apagadas e Resgatadas

“Então Deus criou os seres humanos à imagem [divina]; criando-os à imagem de Deus, criando-os macho e fêmea. Deus então os abençoou e Deus disse: ‘frutifiquem e se multipliquem’”[i]. Esta é a primeira criação do humano, a menos popular, a que a maioria das pessoas não lembra – homem e mulher criados juntos, à imagem e semelhança divina. Esta é a criação que acabamos de ler em Simchat Torá, em Bereshit.


Estamos no Shabat Bereshit, o Shabat da criação do mundo e do ser humano. Todos sabem o que aconteceu, certo? Eva é criada a partir da costela de Adão, a cobra a convence a comer o fruto proibido e sua punição, em última análise, é ter filhos com dor e ser governada por seu marido. Adão e Eva tiveram que deixar o Jardim do Éden, e eles, como todo ser humano depois deles, devem viver e morrer como mortais. Mas, o que aconteceu com aquela mulher, criada na primeira história da criação, a menos popular?


Os sábios do Talmud[ii] também fizeram esta mesma pergunta, então deram um nome para esta mulher: Lilith; e desenvolveram histórias sobre ela. Uma mulher que resiste, insiste em sua igualdade. Em algumas destas histórias, Lilith abandona Adam, se transforma em demônio, ataca crianças recém-nascidas ao longo dos tempos. Se, por um lado, a imagem negativa da mulher independente, forte e igual foi a narrativa utilizada durante séculos, também é verdade que nos últimos duzentos anos vimos esta imagem mudar e os valores de igualdade tomarem corpo nos mais diversos campos de nossa sociedade.


Quando lemos Bereshit, hoje, devemos nos perguntar onde estão estas mulheres que, como Lilith, sabem que são feitas da mesma terra, que resistem e insistem em terem sua humanidade reconhecida. Pessoas como a famosa poetisa e paraquedista Hannah Senesh, que disse: “Eu prefiro ser uma pessoa incomum do que apenas média. Quando penso em um homem acima da média, não necessariamente penso em um homem famoso, mas em uma grande alma ... um grande ser humano. E eu gostaria de ser uma grande alma. Se Deus permitir.” Pessoas como Regina Jonas,[iii] a primeira mulher a ser ordenada rabina.


Nascida em Berlim em 1902 em uma família ortodoxa, Jonas começou a falar sobre seu desejo de se tornar rabina quando ela ainda era uma adolescente. Aos 21 anos, ela se matriculou como estudante no Instituto Superior para Aprendizagem Judaica em Berlim, onde as mulheres matriculadas estudavam no curso de licenciatura; mas Jonas declarou cedo que ela pretendia receber a ordenação rabínica. Mas quando seu professor morreu em 1930, Jonas lutou para encontrar um rabino disposto a ordená-la. Ela argumentou brilhantemente acerca da possibilidade de mulheres se tornarem rabinas, vindo a convencer o Rabino Max Dienemann, diretor executivo da Conferência de Rabinos Liberais, em 1935. Regina Jonas pregou na Nova Sinagoga de Berlim e deu palestras para WIZO e outras instituições locais, gradualmente sendo aceita como uma líder espiritual da comunidade judaica. Depois de sua deportação para Terezin, ela continuou a pregar e a oferecer conforto espiritual para seus companheiros de campo de concentração.


Escondida em uma caixa nos arquivos da Biblioteca Nacional de Israel, foi encontrada uma carta de Regina Jonas a Martin Buber datada de 1938, três anos após sua ordenação. Ela lhe contou sobre seu trabalho em Berlim como rabina: “Dou orientação espiritual a pacientes em hospitais e a residentes de lares de idosos. Também dou palestras na sinagoga, presido funerais e faço sermões.” Ela pedia ajuda para ir a Israel.


Em 12 de outubro de 1944, Shabat Bereshit, a Rabina Regina Jonas foi transportada para Auschwitz, onde foi morta. Regina Jonas foi esquecida, apagada, não sendo mencionada nem mesmo pelo filósofo Martin Buber, pelo teólogo Leo Baeck ou pelo psicólogo Viktor Frankl, que a conheceram ou trabalharam com ela. Foi só depois da queda do Muro de Berlim que seus papéis - e sua história – foram descobertos. Em 2014, 70 anos após ser morta em Auschwitz, uma delegação de mulheres rabinas se reuniu na Alemanha para desenterrar a história esquecida de sua colega pioneira.


Regina Jonas foi uma mulher judia, forte e determinada, cujo sonho era servir ao seu povo, como ela mesma disse: “Eu pessoalmente amo essa profissão e, se possível, também quero praticá-la”. A rabina Regina Jonas foi condenada ao esquecimento pelo simples fato de ser uma pioneira em sua profissão e em sua religião. Mas como ela mesma explicou, “Deus plantou nossas habilidades no coração e uma vocação sem perguntar sobre gênero. Portanto, é dever de homens e mulheres trabalhar e criar de acordo com as habilidades dadas por Deus.” Ela é apenas uma entre tantas mulheres, tantas pessoas, esquecidas, apagadas da história por outras narrativas que encobriram suas existências. Mas suas memórias podem e devem ser resgatadas e suas histórias recontadas.


Aquele grupo de rabinas, que refez os passos e resgatou a história de Regina Jonas, concluiu que o Shabat Bereshit, o aniversário da deportação de Jonas para Auschwitz, serviria como seu yortzeit. Hoje nos juntamos a outras comunidades de todo o mundo para homenagear sua memória, e de tantas outras mulheres, cujas histórias foram escondidas, com uma bênção que ela escreveu em Theresienstadt:


“Nosso povo judeu foi plantado por Deus na história como uma nação abençoada. "Abençoado por Deus" significa oferecer bênçãos, amor e lealdade, independentemente do lugar e da situação... Que todo o nosso trabalho seja uma bênção para o futuro de Israel (e o futuro da humanidade) ... "Homens judeus" e "mulheres corajosas e nobres" sempre foram os sustentadores do nosso povo. Que sejamos julgados dignos por Deus de sermos contados no círculo dessas mulheres e homens”


Lembrar da rabina Regina Jonas é assumir a responsabilidade de resgatar histórias apagadas. Que sua história não seja mais esquecida, e que sua memória seja uma bênção.


Shabat Shalom.



[i] Bershit 1:26 – tradução Chumash Plaut em Português – ainda não publicado [ii] Otzar Midrashim, o Aleph Bet de ben Sira, O alfabeto de ben Sira, 46 https://www.sefaria.org/Otzar_Midrashim%2C_The_Aleph_Bet_of_ben_Sira%2C_The_Alphabet_of_ben_Sira%2C_(alternative_version).46?ven=Sefaria_Community_Translation&lang=bi&with=all&lang2=en [iii] https://jwa.org/encyclopedia/article/jonas-regina

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