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Agradecendo o lado bom da cultura alheia

Na parashá desta semana, Vaieshev, lemos acerca da venda de Iossef (José) por seus irmãos para mercadores que o vendem como escravo no Egito. Assim vamos nos tornar estrangeiros em uma terra estranha. A primeira das nossas muitas jornadas pelo mundo, fora da nossa Terra Prometida.


O Judaísmo, ao longo de sua história e caminhos pelo mundo, adquiriu hábitos e costumes dos lugares por onde andou. O aspecto menos polêmico desta afirmação pode ser claramente sentido nos hábitos alimentares judaicos. Temos na tradição gastronômica judaica guefilte fish, salmão defumado, patê de fígado, cholent!, mamaliga, cuscus, kube, falafel, tishpishti, quindim de pessach. Uma variedade enorme, uma riqueza sem tamanho.


O ato de se utilizar ou adotar hábitos, objetos ou comportamentos específicos de uma cultura foi conceitualizado pela antropologia, nos anos 80, como Apropriação Cultural. A globalização gerou a possibilidade de, sem sairmos do lugar, nos apropriarmos das culturas alheias. Um fenômeno que percebemos com muita força nos últimos anos no Brasil. Nos apropriamos, em especial, de fatores culturais estadunidenses, como o Halloween e a Black Friday. Fazemos festas à fantasia, crianças saem em seus condomínios fechados pedindo doces aos vizinhos, somos invadidos por propagandas de promoções especiais que incentivam um consumo exacerbado. No entanto, deixamos passar o aspecto bonito desta mesma tradição.


Ontem foi Thanksgiving, o Dia de Ação de Graças. Feriado nacional celebrado em várias datas distintas em diversos países de língua inglesa, que começou como um dia de agradecimento e sacrifício pela bênção da colheita do ano anterior, celebrado pela primeira vez há 400 anos atrás, em 1621. Embora o Dia de Ação de Graças tenha raízes históricas nas tradições religiosas e culturais, há muito tempo também é celebrado como um feriado secular, e por isto foi incorporado nos hábitos das comunidades judaicas onde o feriado é celebrado. Tão incorporado que até foi criada uma hagadá de Thankskgiving, com o objetivo de dar um significado judaico para este dia em que as famílias se reúnem, assistem futebol e comem peru (um guia, porque nós, judeus, precisamos de um manual de instruções para todas as nossas celebrações!).


Em minha pesquisa sobre Thanksgiving descobri que no Brasil, o Dia Nacional de Ação de Graças foi instituído pelo presidente Gaspar Dutra em 1949, por sugestão do Embaixador Joaquim Nabuco, que se entusiasmou com as comemorações que viu em 1909 na St. Patrick's Cathedral como embaixador em Washington. A celebração do Dia de Ação de Graças no Brasil ocorreria na quarta quinta-feira de novembro, assim como nos Estados Unidos. Claramente, Halloween e Black Friday fizeram mais sucesso.


Mas, o que há de judaico em Thanksgiving, além do excesso de comida gostosa na mesa, rodeada por amigos e família? Tradicionalmente, a primeira oração que fazemos todas as manhãs, antes de nos levantar, o mode/modá ani, expressa gratidão pelo próprio ato de acordar: “Agradeço diante de Ti Rei Verdadeiro, que restauraste minha alma dentro de mim com compaixão”. Alguns dos textos mais antigos do judaísmo enfatizam a centralidade da gratidão, como o salmo que rezamos há pouco: ט֗וֹב לְהֹד֥וֹת לַיהֹוָ֑ה וּלְזַמֵּ֖ר לְשִׁמְךָ֣ עֶלְיֽוֹן “É bom agradecer a Deus e fazer música ao Seu nome!”[i]. Há duas semanas lemos na parashá Vaietsê que Lea deu à luz seu primeiro filho, e disse: “Desta vez, agradecerei a Adonai”[ii]. Ela o chamou de Yehuda - Judá – que significa “agradecido”. Ser judeu significa ser grato.


De acordo com nossos sábios, “No futuro, todos os sacrifícios serão anulados - mas o sacrifício de ação de graças não será anulado. Todas as orações serão anuladas, mas a oração de agradecimento não será anulada.”[iii] O Talmud ainda ensina que uma pessoa deve encontrar motivos para dizer 100 bênçãos todos os dias. Quando exercitamos nosso coração para apreciar e treinamos nossos olhos para perceber a bondade ao nosso redor, convidamos as bênçãos da admiração, vitalidade e alegria. Pesquisas no campo da psicologia positiva demonstram uma associação entre gratidão e a sensação de bem-estar de um indivíduo. O propósito de oferecer palavras de agradecimento é para nosso próprio crescimento espiritual, para enxergarmos e reconhecermos o que há de bom em nossas vidas, não necessariamente para agradar a Deus.


Nas palavras da rabina Shefa Gold “A gratidão, começa com a surpresa, expande-se para a admiração, gradualmente se transforma em generosidade à medida que procuramos maneiras de responder a esse dom da vida que recebemos. Nossos olhos se abrem para o sofrimento que nos cerca e percebemos que “nós” não estamos separados “deles”; todos nós fazemos parte desta linda tapeçaria ... e quando um fio se desfaz, todo o padrão é diminuído. Paramos de julgar uns aos outros e começamos a servir uns aos outros. Procuramos maneiras de dar, em resposta ao quanto recebemos. Com o tempo, a gratidão planta em nós uma crescente reverência por toda a vida.”


Ontem foi Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, e no Brasil. Um dia que nos lembra da importância de parar, reconhecer e agradecer. Um valor profundamente judaico que, assim como o Thanksgiving, acabamos por deixar passar, entendendo que não nos pertence. Domingo começa Chanucá, uma festa que nos lembra dos sincretismos religiosos e identidade judaica, uma festa para reconhecer e agradecer a vitória e a liberdade de ser quem somos.


Que possamos parar para nos maravilhar com o dia que nasce, com borboletas e passarinhos, com o sorriso de quem amamos. Que saibamos parar para reconhecer o que temos de bom, mesmo quando enfrentamos os dias mais difíceis. Façamos um esforço diário para enxergar e agradecer todas as pequenas bênçãos que a vida nos traz. Que a capacidade de agradecer seja o nosso milagre de luz, a cada dia, e para muito além do chag.


Shabat Shalom.




[i] Tehilim 92: 1 [ii] Bereshit 29:35 [iii] Vayikra Rabbah 9:7

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