top of page

A vida em uma mala - Shabat dos Refugiados

Se você precisasse deixar sua casa hoje, fugir para outro lugar, o que você levaria? As fotos de família estão na nuvem? Os objetos especiais da família serão carregados, ou será que vamos poder voltar para pegar? Sua vida, sua história em uma mala.


Ser um refugiado é abandonar o seu país por um fundado temor. Isso significa de uma hora para a outra fazer uma mala, abandonar sua terra natal porque a sua vida em seu lugar de origem está em risco em razão de um conflito ou de alguma perseguição. Antes do início da guerra na Ucrânia, o número de refugiados no mundo era estimado em cerca de 26 milhões. De acordo com a ONU, na última semana um milhão de ucranianos somaram-se a esta lista de refugiados no mundo.


Como acontece anualmente no Shabat Pekudei, este Shabat, dos dias 04 e 05 de março, foi escolhido pela Hebrew Immigrant Aid Society - HIAS para ser observado como o Shabat dos Refugiados. Fundada em 1881 para ajudar os judeus que fugiam dos pogroms na Rússia e na Europa Oriental, a HIAS tocou a vida de quase todas as famílias judias nos Estados Unidos, em um início similar ao da ARI e da CIP no Brasil. Hoje ela não é uma sinagoga, mas trabalha com refugiados em campos e cidades de diversos lugares do mundo, como Quênia e Equador, sendo a única organização judaica global cuja missão é ajudar os refugiados onde quer que estejam.


“Lech Lechá – saia da sua terra, do seu lugar de origem, da casa de seu pai, para a terra que Eu lhe mostrarei.”[i] Esta passagem, que lemos na terceira parashá da Torá, Lech Lechá em Bereshit, mostra que, desde o princípio, com nosso primeiro patriarca, nós, judeus, nos vimos inúmeras vezes como refugiados, obrigados a fazer uma mala e sair, para sermos estrangeiros, buscando abrigo em terras estranhas. Muitas vezes nos estabelecemos, criamos raízes e nos tornamos, de certa forma, parte daquela outra sociedade, e muitas outras, precisamos fugir. Por isto falamos Ladino e Idishe, comemos guefilte fish e kibe, fazemos diferentes nós nos tefilin e rezamos melodias tão distintas, dependendo dos caminhos pelos quais nossas famílias passaram. Somos todos filhos, netos e até mesmo nós, refugiados. Como diz o Talmud[ii], “Em cada geração, uma pessoa é obrigada a se ver como se tivesse saído do Egito.”


Talvez esta certeza histórica de que sempre seremos nômades, fugitivos, refugiados, seja o motivo para a tão extensa literatura e tradição que temos sobre ser e acolher o estrangeiro. Somos diversas vezes comandados a proteger e cuidar da viúva, do órfão e do estrangeiro, prover para os mais frágeis de nossa sociedade. De acordo com Maimônides, fomos ordenados a amar o estrangeiro assim como amamos o Divino.[iii] Neste mês, celebramos Purim, que nos lembra de quando fomos estrangeiros na Pérsia. No próximo mês celebramos Pessach, a grande festa da libertação da escravidão, depois que fomos um povo estranho no Egito. Estamos sempre fazendo esta mala.


Conta um antigo midrash, uma história rabínica[iv], que Deus recolheu pó para fazer o primeiro humano dos quatro cantos do mundo - vermelho, preto, branco e verde. Por que dos quatro cantos da terra? Porque, se alguém vem do oriente para o ocidente e chega ao fim de sua vida, quando se aproxima de sua partida do mundo não lhe será dito: "Esta terra não é o pó do seu corpo, é meu. Volte para onde você foi criado." Pelo contrário, em todo lugar que uma pessoa anda, de lá ela foi criada e para lá ela retornará.


Ser refugiado é estar em um lugar com o coração conectado a outro. É estar em um campo de refugiados na Polônia, chorando pela destruição do memorial de Babyn Yar na Ucrânia. É não medir esforços para proteger aqueles que você ama, e de certa forma, trazê-los em sua mala. É não aceitar a possibilidade do final trágico e repentino das construções de uma vida: a comunidade, a escola, o lugar que construímos para habitar.


Esta semana lemos a última parashá do livro de Shemot, Êxodo, a parashá Pecudei sobre a finalização da construção do Mishkán, de seus apetrechos e das vestimentas dos sacerdotes. Lemos sobre a consagração destas obras, e sobre o momento em que a Presença do Eterno enche o Tabernáculo. Aprendemos que a Presença Divina se levantava para o momento de peregrinação, e depois voltava a habitar aquela estrutura móvel, consagrada para o Divino. Sabemos da presença e proteção Divina “be chol maseihem”[v] ao longo de sua jornada, com uma nuvem que guiava os israelitas dia e noite na imensidão do deserto.


Talvez Pecudei seja a parashá escolhida para o Shabat dos Refugiados, para nos trazer a consciência da fragilidade das mulheres e homens, das crianças e velhos que hoje caminham sem uma nuvem Divina como guia. Mas também porque nos lembra que para caminhar é preciso abrir espaço do lugar onde estamos habitando; que nossas estruturas podem ser frágeis, mas devemos sempre agir como comunidade nos ajudando uns aos outros a caminhar e eventualmente remontar as estruturas. E então, quando acharmos que chegamos ao final e repousamos nossa mala no chão, repetimos em uníssono, em uma voz forte que possa ser ouvida na Bessarábia, em Kiev, em Odessa, as palavras tradicionais do final da leitura de um livro da Torá: "Seja forte, seja forte, e vamos nos fortalecer uns aos outros"


Chazak, Chazak, veNitchazek.


Shabat Shalom.


[i] Bereshit 12:1 [ii] Mishná Pesachim 10:15 [iii] Mishnê Torá, Hilchot Deot 6:4 [iv] Yalkut Shimoni, Genesis 1:13 [v] Shemot 40:38

20 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page