top of page

A Torá viajante

Em 1942, o Museu Judaico Central de Praga enviou uma carta às comunidades da Bohemia e Moravia, regiões da República Checa onde havia diversas comunidades judaicas liberais, que enviassem todas as suas posses remanescentes para Praga, para que fossem escondidas e preservadas. O resultado foi a conservação de um tesouro, e nele, a coleção de 1.800 rolos de Torá. Os rolos, que sobreviveram à Shoá arquivados e catalogados pelos nazistas, não se sabe ao certo por quais motivos, foram colocados pelo regime comunista em um depósito, e somente puderam ser salvos em 1963, quando adquiridos pelo filantropo inglês Ralph Yablon, e enviados a Londres. Em fevereiro de 1964 1.800 rolos de Torá chegaram à sinagoga de Westminster, onde hoje está o Czech Memorial Scrolls Museum e a sede do Memorial Scroll Fund.


לֹא בַשָּׁמַיִם הִוא[i]


A Torá não está nos céus, ela deve ser lida, vivida, interpretada. Por isto, 1.400 das Torot que foram salvas da República Tcheca foram distribuídas ao redor do mundo, do Alasca à Nova Zelândia, passando pelo Brasil. E foi justamente em busca de uma Torá para a comunidade reformista do Espírito Santo, a CICAPI, que eu visitei Memorial Scroll Fund. Além da emoção de ver o museu e estar junto da maior coleção de sifrei Torá que já vi, escolher uma Torá para uma comunidade era uma responsabilidade imensa. Conheci as opções, enviei fotos, e após uma semana nos decidimos por uma Torá de origem Polonesa, linda! E então nossa aventura começou.


“Escreva este poema e ensine-o ao povo de Israel”[ii] Esta é a mitsvá de número 613 – escrever uma Torá, em nosso caso, trazê-la à vida novamente.


Torá nos braços, voltamos para o apartamento, de lá fomos ao aeroporto, fizemos nosso teste de Covid com ela nos braços, despachamos as malas, convencemos as pessoas do check-in a travarem o assento entre meu marido Paulo e eu, para que o objeto sagrado dos judeus de mais de 100 anos de existência, sobrevivente do holocausto, pudesse viajar em paz na conexão até Frankfurt, onde pegaríamos o voo para o Brasil. No entanto, não contávamos com Judy, no portão de embarque. Uma mulher ruim, determinada a não deixar que entrássemos com a Torá no avião. Ela nos obrigou a despachar a Torá! Muito tensos, embrulhamos a Torá em todos os casacos que tínhamos, pensando que, mesmo que passássemos frio no avião, a Torá estaria o melhor protegida possível. Judy nos ensinou a lição da maldade, falta de empatia, e do receio. Sentimentos que provavelmente aquela Torá já havia presenciado outras vezes em sua existência, de maneira muito mais forte.


De Pirkei Avot, coletânea de ensinamentos rabínicos, aprendemos: “quem honra a Torá é honrado pelos outros.”[iii]


Chegando em Frankfurt, Paulo conseguiu recuperar a Torá do bagageiro do avião, com a desculpa de que iríamos embalá-la melhor para despachar novamente, mais protegida. Secretamente, estávamos determinados a entrar com ela no próximo voo pertinho de nós. Quando passamos no raio x do aeroporto, aconteceu o momento mais mágico do percurso. Fui perguntada: “o que é isto que a senhora está levando?” respondi: “papel e madeira” (a Torá é feita de pergaminho, mas eu não queria mais problemas...) então o diálogo continuou... “Sim, mas o que é isto?” “Bem, isto é uma Torá, um objeto sagrado dos judeus. Aqui está escrita a história dos cinco primeiros livros da bíblia, à mão, por um escriba. É a história da vida de Moisés” “então é importante...” “sim, é um objeto de mais de 100 anos, sobrevivente do holocausto” “a senhora pode abrir para a gente ver?” Foram juntando pessoas. Eu falei: “Claro!”, um guarda veio e falou: “não é necessário, não precisa, é sagrado” eu disse “não há problemas, posso mostrar” com cuidado fui desembrulhando a Torá, tirei sua vestimenta, desenrolei um pouco. Ao meu redor estavam todos os guardas, as esteiras paradas, uma sensação de que o tempo havia congelado... Oh... todos emocionados agradeceram, e aquele guarda veio falar comigo: minha família era judia no Chile, mas agora moro aqui na Alemanha.


“Lembrem-se da Torá de Meu servo Moisés”[iv]

Diz o profeta Malachi, que lemos neste Shabat haGadol, que antecede a festa de Pessach. Lembrar e contar são os ensinamentos de Pessach, enfatizados pelo profeta como os caminhos para dias melhores.


Shabat haGadol, através da leitura da haftará, anuncia um futuro “gadol”, um futuro incrível, trazido pelo profeta Elias ou “Eliahu haNavi”, aquele para o qual abrimos as portas em nossos sedarim. Talvez, ao viajar com a Torá tenhamos tido um gostinho dessa esperança: a amargura em um aeroporto e depois uma surpreendente voz de esperança e respeito compartilhados. Que esta Torá, salva dos horrores da guerra, reúna muitas pessoas aqui no Brasil para aprender e compartilhar a esperança de um tempo de respeito, paz, justiça e compreensão mútuos.


Shabat Shalom!

[i] Devarim 30:12 [ii] Devarim 31:19 [iii] Pirkei Avot 4:6 [iv] Malachi 3:22

173 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page