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A Torá não é para conforto

Hoje marcamos o Jewish Women's Aid Shabbat. A Jewish Women's Aid (JWA) foi fundada na década de 1980 para encontrar maneiras de apoiar mulheres e crianças judias afetadas por abuso doméstico e violência sexual. Desde a sua fundação, a JWA estabeleceu serviços de refúgio e aconselhamento, um Serviço de Abuso Doméstico profissional, programas de educação em escolas, uma linha de apoio nacional composta por 60 linhas de ajuda e uma base de voluntários de cerca de 150 pessoas em todo o país. O trabalho da JWA é tão importante que inspirou comunidades judaicas em todo o mundo. No meu país, Brasil, uma linha de ajuda para mulheres vítimas de abuso e violência foi fundada em 2021 pela Federação Judaica do Estado de São Paulo, tendo o trabalho da JWA como uma de suas inspirações.


A questão pode parecer não ser tão necessária nos dias de hoje em que temos uma sociedade mais igualitária. Também pode nos parecer alheia, pois é mais fácil acreditar que o abuso doméstico e a violência sexual não fazem parte da comunidade judaica, que não acontecem com pessoas que conhecemos. No entanto, na Inglaterra e no País de Gales, um total de 40.572 mulheres foram vítimas de agressão sexual em 2021, um aumento de 13% em relação ao ano anterior. No mesmo ano, no Brasil, foram registradas 56.098 denúncias de estupro. Significando que uma menina ou mulher foi estuprada a cada 10 minutos. A JWA apóia cerca de 150 mulheres judias que sofrem abuso doméstico todos os meses. Contar suas histórias e conscientizar as pessoas são ferramentas importantes para prevenir esse tipo de violência. Criar uma rede que cuide e apoie essas mulheres e crianças, como faz a JWA, é um trabalho sagrado. Neste shabat celebramos o trabalho da JWA, expressamos gratidão por seu serviço e lembramos que, infelizmente, ainda há muito a ser feito.


Na verdade, quando lemos nosso texto sagrado, percebemos que a violência doméstica e o abuso sexual não são problemas novos. As famílias bíblicas sobre as quais lemos eram tão humanas quanto nós, e freqüentemente enfrentavam desafios profundos e trágicos.


Viajando pelas parashiot mais recentes, encontramos uma difícil descrição do ser humano em seus melhores e piores comportamentos. Alguns das quais continuam até nossos dias. Na parashat Vayeira, nosso patriarca Avraham quase mata seus dois filhos, ao enviar seu primogênito Ismael para o deserto, e ao quase sacrificar Itzhak, o filho que ele ama, como prova de devoção a Deus. Na parashah da semana passada, Toldot, enfrentamos as terríveis habilidades parentais de Rivka e Itzhak, que favorecem um filho em detrimento do outro, que não podem abençoar seus dois filhos, fazendo com que briguem e se odeiem. Na próxima semana leremos sobre o estupro de Dina. Uma história terrível de violência, vergonha e silêncio.


Hoje vamos ler a parashat Vayeitzei – ele saiu. Iaacov deixa a casa de seus pais e foge das consequências de seu ato de roubar a bênção de seu irmão. A caminho da terra de sua mãe, Iaacov tem um sonho repleto de imagens mágicas, onde lhe é apresentado um projeto: “Sua descendência será como o pó da terra, e você se espalhará para o oeste e para o leste, e o norte e o sul”. Provavelmente com esse projeto em mente, independente de como a história evolui no meio, ao final da parashá, Iaacov deixa a terra de sua mãe muitos anos depois com duas esposas e duas concubinas: Leah, Rachel, Bilá e Zilpá, e seus filhos. Com eles, conhecemos nossos seis imahot. Seis?


Foi apenas recentemente que Sara, Rivka Rachel e Lea, as quatro imahot, foram adicionadas à Amidah nos sidurim progressistas, como um reflexo do movimento feminista judaico para fazer as mulheres contarem dizendo seus nomes e contando suas histórias.


Nesse sentido, a rabina Judith Hauptman escreveu, em 1998: “Se estamos pedindo a Deus que seja gentil conosco hoje por causa do mérito de nossos progenitores, então mencionar as matriarcas é fundamental”. A liturgista Marcia Falk foi mais longe: “Se realmente pretendemos que a seção Avot [da Amidá] se refira aos nossos “ancestrais”, e se queremos que toda a comunidade se sinta conectada às fontes ancestrais, devemos começar lembrando todos os antepassadas - incluindo Bilhá e Zilpá, as concubinas que deram à luz quatro dos filhos de Iaacov - e proceder a partir daí para retratar a trilha de suas descendentes femininas esquecidas.


“Quando reescrevemos a Amidá para incluir Bilá e Zilpá” ensina a Rabina Susan Schnur, “introduzimos em nossas orações uma ética diferente de decência. A justiça é o valor mais alto da moralidade masculina, mas a moral feminina valoriza mais a ética do cuidado, cuja premissa é que ninguém deve ser ferido”.


A Torá não é para conforto. Quando pensamos em textos sagrados, a primeira ideia é que eles vão trazer alegria, boas energias, descanso. Não a Torá. Especialmente, não o livro de Bereshit. Aqui encontramos pessoas reais vivendo suas vidas e cometendo os erros mais inimagináveis.Elas constroem, cozinham, recebem visitas, casam e perdem entes queridos. Elas enfrentam a infertilidade e têm filhos. Elas traem e matam seus irmãos, maltratam suas esposas, sacrificam seus filhos de várias maneiras. Em nosso texto sagrado, ouvimos sobre abuso, estupro e traumas.


A Torá não é para conforto; A Torá é para mudança. Ela impõe a nós, humanos, cheios de defeitos, os mais altos padrões morais. A Torá nos ensina que é nossa responsabilidade proteger os vulneráveis, cuidar das crianças, tratar os outros com respeito. Mas, para isso, precisamos sair de nosso lugar de conforto e ver nossa realidade sob novas perspectivas, como nossos antepassados fizeram. Devemos ver e reconhecer nossas mulheres, dizer seus nomes, contar suas histórias, fazê-las valer. Ao resgatar nomes e histórias de mulheres em nossa tradição, estamos fazendo justiça não apenas ao nosso passado, mas também criando um espaço no presente e construindo um futuro sagrado.


Estamos aqui juntos para viver nossos valores judaicos, compartilhar o Shabat, estudar a Torá e agradecer. Obrigado, JWA, por seu trabalho sagrado de proteger meninas e mulheres vulneráveis e permitir que elas se sintam e sejam sagradas novamente.

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